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José Pio Martins

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Comportamento

O mal não precisa de monstros

Dostoievski o que é o mal
Dostoievski, em seus livros, debruçou-se muito sobre o problema do mal e o que leva as pessoas a cometê-lo. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“Se Deus não existe, então tudo é permitido” – a frase é de Ivan Karamazov, personagem do livro Os Irmãos Karamazov, obra gigante de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), classificada por Sigmund Freud (1856-1939) como o maior livro da história. Dostoiévski penetra fundo na alma humana com seu bisturi literário nas 1.040 páginas dos dois volumes traduzidos direto do russo para o português pela Editora 34. Na obra, Dostoiévski vasculha com riqueza de detalhes os porões do mal e do sofrimento.

Certas perguntas inquietantes explodem do começo ao fim da narrativa. De quem é a culpa pelo mal que há no mundo? O mal está no mundo ou está dentro de nós mesmos? Se Deus existe, por que ele permite o mal e a crueldade, inclusive contra crianças?

Dostoiévski, para muitos o maior escritor que já existiu, usa a linguagem do romance de ficção para retratar a realidade nua e crua da vida na Terra, com a maestria de sua condição de filósofo e observador da vida política e social. Ele fez por meio da literatura o que Arthur Schopenhauer fazia em obras de filosofia. Ambos trataram do mal em suas várias formas, intensidade e constância. O mal não é algo esporádico ou um evento incomum que só ocorre de vez em quando. O mal em toda a sua perversidade é um evento normal, cotidiano.

O mal não é algo esporádico ou um evento incomum que só ocorre de vez em quando. O mal em toda a sua perversidade é um evento normal, cotidiano

Em Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski usa o personagem Ivan Karamazov para uma intrincada questão. Ele, Ivan, não desacredita nem renega Deus, como se fosse um ateu militante, mas o faz lamentando que, embora gostasse de acreditar, ele não consegue. Ivan expressa sua revolta contra o mal e a desgraça na Terra, e indaga por que Deus, se existe, permite que a vida seja, como disse Schopenhauer em outras palavras, um vale de desgostos, lágrimas e dor. Para Ivan, este não pode ser um mundo de um Deus que, se existe, deve ser acusado não por existir, mas por permitir. Além disso, o mal não precisa de monstros, ele é praticado por pessoas normais, muitas delas consideradas boas. O mal é banal e corriqueiro.

Sobre esse ponto, vale lembrar Hannah Arendt, a filósofa judia que conseguiu escapar das garras de Hitler e emigrou para os Estados Unidos. Ela viajou a Jerusalém em 1961, para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, o nazista que comandou o transporte de judeus para os campos de concentração na Polônia. Ela queria ver um monstro de perto.

Eichmann não participou da decisão política de extermínio, mas construiu o sistema ferroviário que tornou possível o extermínio de judeus. Tendo fugido para a Argentina após o fim da guerra, Eichman foi capturado em 1960 pelo serviço secreto israelense e foi levado a julgamento em Jerusalém.

Mas, no tribunal, Hannah via uma pessoa normal, a quem ensinaram a ser patriota, cumprir as leis e a obedecer às ordens. Se o Estado totalitário alemão criou leis cruéis, não caberia a ele discutir, mas apenas cumprir sua atividade na engenharia. Consta que Eichmann nunca matou ninguém, nem era dado a visitar os campos de concentração. Ele apenas construiu um sistema de transporte. Ao notar que ali estava um homem normal, Hannah Arendt viu a “banalidade do mal”, título de um de seus livros.

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Em novembro de 2018, publiquei um artigo na Gazeta do Povo com o título A banalidade do mal, após ter ficado chocado com uma cena em que prisioneiros jogavam bola com a cabeça de um detento morto por decapitação dentro de uma penitenciária brasileira. Lembro que, naquela data, a imprensa noticiou que um jovem de Brasília, na véspera de completar 18 anos, havia assassinado a namorada de 14 anos e filmado todo o ato criminoso, cujo vídeo ele enviou aos amigos. Por não ter 18 anos no dia do crime, ele era inimputável. Não seria preso.

O filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797) mostrava sua indignação com a banalidade do mal. Ele proponha que as pessoas de bem reagissem contra a proliferação do mal e da perversidade, dizendo: “Para que o mal triunfe, basta que os bons fiquem de braços cruzados”.

Por fim, vale notar que o mal tem várias caras e várias formas de se desenrolar. Mesmo o sistema montado para conter o mal, o Poder Judiciário, pode ser ele próprio a fonte do mal, a exemplo dos fuzilamentos em Cuba, da morte de mulheres por apedrejamento na Nigéria e tantos atos similares, feitos sob o amparo da lei. Definitivamente, o mal não precisa de monstros.

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