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O avanço da inteligência artificial tem transformado diversas áreas da sociedade, inclusive o cenário político. Contudo, quando essa tecnologia é utilizada para manipular a opinião pública por meio de falsificações, distorções e montagens, como no recente episódio envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT), que, pelo que foi noticiado, impulsionou com verba pública um vídeo em que o ex-presidente Jair Bolsonaro é retratado como um ventríloquo de Donald Trump, a discussão ultrapassa os limites éticos e atinge diretamente o campo da legalidade. O uso de IA para produzir conteúdo forjado, com aparência realista, deve ter suas consequências jurídicas, principalmente quando há dolo, manipulação de fatos e financiamento com recursos do Fundo Partidário.
Embora estejamos a mais de um ano das eleições, o fato de o conteúdo ter sido impulsionado por uma legenda registrada no TSE e envolver figuras políticas evidentes — com viés eleitoral claro — já acende o alerta para possível configuração de propaganda eleitoral irregular antecipada. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral admite que, ainda fora do período oficial de campanha, práticas que enaltecem pré-candidaturas, depreciam adversários ou deturpam os fatos com objetivo eleitoral podem configurar ilícitos eleitorais. O que está em jogo não é apenas o tempo da propaganda, mas a forma, o conteúdo e os meios utilizados. Quando há o uso de inteligência artificial para criar um vídeo que induz o espectador ao erro, com narrativa falsa e aparência verossímil, estamos diante de uma grave violação do processo democrático.
As normas já em vigor oferecem meios para conter esse tipo de abuso. A Resolução do TSE nº 23.610/2024, proíbe expressamente o uso de deepfakes ou de qualquer material produzido com IA que simule falas ou ações de pessoas reais sem a devida identificação. A omissão dessa informação, somada ao impulsionamento pago com recursos públicos, pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação, ensejando sanções como cassação de registro ou mandato e inelegibilidade. O argumento de que se trata de uma sátira é ineficaz quando há manipulação tecnológica para enganar, especialmente em larga escala.
Quando há o uso de inteligência artificial para criar um vídeo que induz o espectador ao erro, com narrativa falsa e aparência verossímil, estamos diante de uma grave violação do processo democrático
No campo civil, a utilização de IA para forjar falas ou associar falsamente alguém a determinada ideologia ou conduta sem autorização pode configurar violação aos direitos da personalidade, conforme previsão do Código Civil. A vítima tem direito à reparação por danos morais e materiais, bastando a prova do nexo entre a conduta ilícita e o dano. Já na esfera criminal, a difusão de vídeos manipulados com o objetivo de manchar a reputação de adversários pode ser enquadrada nos crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal. Quando disseminados em larga escala por meios digitais, esses delitos se agravam, podendo ensejar inclusive a responsabilização pela prática de crimes cibernéticos, nos moldes da Lei 12.737/2012 e do Marco Civil da Internet.
Mais preocupante ainda é o uso de recursos do Fundo Partidário para impulsionar esse tipo de material. O dinheiro público destinado à manutenção das atividades partidárias não pode ser utilizado para desinformar ou manipular o eleitor. Quando há desvio de finalidade e financiamento de conteúdo sabidamente falso ou ofensivo com verba pública, os dirigentes partidários podem responder não só na Justiça Eleitoral, mas também civil e administrativamente, com base na Lei de Improbidade Administrativa, além de serem obrigados a restituir os valores aos cofres públicos.
A ausência de uma legislação específica sobre fake news, como o arquivado PL 2.630/2020, não implica lacuna normativa. O Brasil possui um arcabouço legal suficiente para coibir e punir práticas de desinformação, especialmente quando envolvem atores políticos e verbas públicas. O que falta é a aplicação efetiva e célere das leis já existentes.
A inteligência artificial pode ser uma aliada da democracia, mas seu uso descontrolado e manipulador representa uma ameaça direta à soberania popular. A vedação ao uso de IA para fins ilícitos no debate político é não apenas um imperativo jurídico, mas também um compromisso ético com a verdade, a honra dos envolvidos e a integridade das eleições. Permitir o uso de deepfakes como forma de ataque político financiado com dinheiro público é abrir espaço para uma política de simulações, onde a mentira ganha cara, voz e poder — e onde o eleitor se torna vítima de uma engenharia artificial de convencimento. O Estado Democrático de Direito não pode tolerar esse caminho. A liberdade de expressão, pilar da democracia, não abarca o direito de enganar. Muito menos com o dinheiro do povo.




