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Quando a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos fala do “Corolário Trump à Doutrina Monroe”, não é apenas uma escolha extemporânea de um conceito. É uma confissão estratégica: Washington assume, por escrito, que deixou a América Latina escorregar para fora de sua órbita e agora precisa recuperar o terreno perdido. Depois de duas décadas gastas no Oriente Médio e na Eurásia, os EUA descobriram que o flanco vulnerável à sua segurança e estabilidade está bem na sua vizinhança.
O trecho da ESN sobre o hemisfério ocidental é cristalino: o objetivo é manter a região “estável o suficiente” para conter migrações em massa, cooperar contra cartéis e, sobretudo, impedir “incursão hostil estrangeira” ou “propriedade de ativos-chave” na América Latina.
Na prática, isso significa travar uma disputa direta com a China por portos, cabos submarinos, redes de telecomunicações, energia, mineração e infraestrutura logística. O documento assume que “competidores não hemisféricos” já “avançaram profundamente” na região e que isso foi “outro grande erro estratégico americano das últimas décadas”.
No plano econômico, o texto promete “diplomacia comercial”, com tarifas, acordos recíprocos e financiamento público para ajudar empresas americanas a disputar contratos de infraestrutura.
A nova estratégia diz, sem rodeios, que Washington deve expor os “custos ocultos” da ajuda estrangeira chinesa — que são espionagem, ciberameaças e “armadilhas da dívida” — e usar sua vantagem em finanças e tecnologia para induzir países a rejeitarem essas ofertas.
O líder chinês Xi Jinping não assistiu em silêncio. Poucos dias depois da publicação da estratégia americana, Pequim divulgou seu terceiro “Documento de Política da China sobre a América Latina e o Caribe”. Oficialmente, nada a ver com os EUA. Na prática, é uma resposta no mesmo tabuleiro. O texto enquadra a região como parte central do “Sul Global”, celebra sua “tradição de independência e unidade” e afirma que China e América Latina já formam “uma comunidade com futuro compartilhado”.
É a linguagem padrão do léxico de Xi, com um detalhe importante: agora, a América Latina é tratada como espaço prioritário para aplicar todas as grandes iniciativas globais de Pequim. Para entender o salto, basta olhar para o primeiro documento chinês para a região, de 2008. Naquela época, a China se apresentava como mais um parceiro em busca de “igualdade, benefício mútuo e desenvolvimento comum” em política, comércio, investimentos e cultura.
Não havia Belt and Road, nem discurso articulado de “comunidade de destino”. O foco era abrir portas: reconhecimento diplomático, acesso a commodities, alguns créditos, visitas de alto nível. Em 2016, o segundo documento já falava em um arcabouço “1+3+6” – um plano, três motores (comércio, investimento, finanças) e seis áreas prioritárias (energia, infraestrutura, agricultura, manufatura, inovação e tecnologia da informação) – um desenho mais sofisticado de ocupação econômica e tecnológica.
O texto de 2025 é outra coisa. Ele anuncia cinco “grandes projetos” para construir a comunidade sino-latina: unidade, desenvolvimento, civilização, paz e um curioso “coração dos povos”. Debaixo desses rótulos estão planos concretos: coordenação em organismos como G20, FMI e Banco Mundial para “reformar a governança econômica global” e aumentar o peso do Sul Global; defesa explícita do sistema multilateral de comércio contra o que chamam de “bullying unilateral”. Há anúncios de oposição frontal ao “desacoplamento e quebra de cadeias de valor” que o documento americano confessa perseguir.
No plano financeiro, a China propõe ampliar liquidação em moedas locais, discutir esquemas de compensação em renminbi, expandir swaps cambiais e usar fundos especiais, “empréstimos preferenciais” e “empréstimos para infraestrutura” para alavancar grandes projetos. Isso já acontece na prática.
Entre 2005 e 2020, os bancos de política chineses despejaram mais de US$ 138 bilhões em crédito para a América Latina. Endividaram quase todos os países para depois cobrar em forma de posicionamento político, acesso a recursos naturais e muita corrupção. É o que os americanos chamaram de “armadilha da dívida” no documento deles.
O resultado é visível no mapa: em pouco mais de 20 anos, o comércio China–América Latina saltou de cerca de US$ 12–14 bilhões para quase US$ 480 bilhões em 2023
A diferença de linguagem entre os dois documentos é reveladora. A estratégia americana fala em “negar” a presença de competidores e em “preeminência” dos EUA no hemisfério, condicionando ajuda e alianças à redução da influência de terceiros em portos, bases e ativos.
O documento chinês é sutil. Não menciona os Estados Unidos diretamente, mas acusa Washington de “bullying unilateral” e “hegemonia”. Além disso, se esforça na estratégia de mostrar que, diferentemente da assertividade dos americanos, os chineses são boa-praça: oferecem tudo e não cobram nada.
Em termos simples: os Estados Unidos anunciam que voltarão para dentro de casa e colocarão a América Latina no centro da sua política de segurança. A China responde lembrando que já está instalada, com portos, créditos, cabos, satélites, acordos comerciais e uma estratégia de longo prazo iniciada pelo menos desde 2008. Um tenta reconquistar influência que tratou como garantida e descartável.
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA e o terceiro documento chinês para a América Latina são, no fundo, duas formas distintas de dizer a mesma coisa: a disputa pelo futuro do hemisfério saiu da teoria e foi parar, de vez, na prática das obras, dos contratos e das lealdades políticas. O erro do Brasil sob Lula é não tratar a relação como comercial, mas ideológica. Abraçou a lorota do bloco Sul-Sul, alimenta as rinhas dos BRICS contra a América e tenta empurrar agendas claramente antiamericanas.
Em tese, o Brasil não teria que ter um lado. Mas o governo escolheu o da China. Agora, parece querer voltar a ter um pé em cada lado da canoa. Mas talvez seja difícil conquistar a confiança dos americanos e manter a dos chineses sem parecer traição.





