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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Desfile militar

O “Dia da Vitória” e o clube dos autocratas

Xi Jinping usa a história para exibir poder bélico ao lado de Putin e Kim. Lula, ao prestigiar a China, põe o Brasil no palco das autocracias. (Foto: Rao Aimin/XINHUA/EFE/EPA)

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Sob a coreografia milimétrica da Praça Tiananmen, Xi Jinping encenou uma ficção em uma celebração grandiloquente: o “80º aniversário da vitória” que a China reivindica na Segunda Guerra. Aliás, a China que Xi celebra nem sequer existe mais — é pré-revolucionária e foi apagada pelo comunismo. Se nem o país é o mesmo, imagine a vitória.

No caso, a “vitória” foi o fim da invasão japonesa — quando o Japão já estava sozinho, sem a Alemanha e a Itália, e em ruínas após duas bombas atômicas varrerem suas cidades. Mas que importa a história, quando se pode construir uma sob medida?

A festa liderada por Xi é mais que uma parada militar. Ela tampouco se refere ao passado. Trata-se de uma mensagem sobre o futuro que o Partido Comunista projeta para o mundo. Mísseis hipersônicos, drones, blindados e milhares de militares são apenas alegoria.

O que importa mesmo é o clube das autocracias que orbitam Xi e seus planos de transformar a democracia em algo tão fluido que qualquer um — até o ditador atômico da Coreia do Norte — pode se vangloriar de ser um democrata.

A foto que ilustra esta coluna mostra Xi ladeado por Vladimir Putin e Kim Jong-un. Trata-se da imagem de uma ordem paralela, unida pela oposição ao Ocidente, pelo culto à força, pelo desprezo à alternância de poder e pelo nenhum apreço à democracia.

Ao roubar a história da Segunda Guerra, Xi apresenta seu Partido Comunista como fiador da libertação nacional, empurrando para as sombras o esforço decisivo do governo nacionalista da então República da China, que lutou até a rendição japonesa. Os verdadeiros combatentes pela liberdade da China pré-comunista hoje resistem em Taiwan.

Não por acaso, Taiwan respondeu no mesmo idioma da simbologia. O presidente Lai Ching-te falou em “não celebrar a paz pela boca do cano do fuzil” e lembrou que foram soldados da República da China que sangraram contra o Japão.

Na ilha, a parada de Xi não é vista como tributo histórico, mas como propaganda para sustentar a coerção militar no Estreito. História como arma: lição antiga, uso atual

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É nesse palco que o Brasil decidiu aparecer, e não nos camarotes discretos. Celso Amorim, assessor especial de Lula, representou o país na tribuna oficial. Dilma Rousseff, hoje chefe do Banco dos BRICS, também marcou presença.

Em diplomacia, gestos valem mais do que discursos. Portanto, ao se somar ao clube dos autocratas, Brasília envia um sinal de alinhamento simbólico que será lido em Washington, Bruxelas e Tóquio como mais um passo rumo ao divórcio.

Os defensores dirão que “é só protocolo” e que “o Brasil fala com todos”. Mas há protocolos e protocolos. Há missões técnicas que aproximam países sem avalizar narrativas; e há presenças que emprestam legitimidade a espetáculos concebidos justamente para isso: demonstrar força e vender uma história oficial. Em 2025, com a guerra na Ucrânia em chamas e a Coreia do Norte testando mísseis, dividir palanque com Putin e Kim não é neutro. É escolha.

A parada também revela as prioridades de Xi. O arsenal exibido não mira apenas a memória; mira o entorno: Mar do Sul da China, Índico, Pacífico Ocidental, Taiwan.

A imprensa oficial revestiu a cerimônia de “memória antifascista”, como se o regime que tranca opositores e comanda campos de reeducação pudesse reivindicar para si o monopólio do antifascismo. É o truque semântico de sempre: se o Partido é o herdeiro da vitória de 1945, toda crítica vira heresia. O problema para Xi é que a história tem testemunhas.

Para o Brasil, que gosta de se apresentar como ponte entre mundos, o episódio funciona como teste de coerência. Queremos liderar pela moderação, mediar conflitos e defender a Carta da ONU? Então convém medir os palcos que escolhemos e os figurinos que aceitamos vestir.

Não se trata de romper com a China, que é parceiro central, mas não faz sentido algum normalizar modelos autoritários. A neutralidade que ajuda a paz é a que preserva princípios, não a que posa para a foto errada.

O Brasil já descobriu, a duras penas, como o mundo lê imagens. Volto a dizer: engana-se quem pensa que as tarifas aplicadas ao Brasil são por causa de Jair Bolsonaro. A bordunada dos Estados Unidos é resposta às ações de Lula e à sua política subserviente aos interesses chineses.

Na diplomacia, não há legenda capaz de desfazer a gramática de um close: quem aplaude na arquibancada errada sai no enquadramento da história. E história, como se viu nesta semana em Pequim, é precisamente o que está em disputa. É uma guerra que não era do Brasil, mas Lula e o PT resolveram jogar o país no campo de batalha.

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