
Ouça este conteúdo
De uma forma bem resumida, o jornalismo pode ser descrito por três passos: investigar, checar e publicar. Mas antes dessa receita aparentemente simples há coisas ainda mais complexas como cultivar e filtrar fontes, aprender a lidar com vaidades dos outros (e as próprias) saber esperar e sobretudo duvidar. Essa descrição ainda não é suficiente para definir a atividade, mas descreve o básico. O que a jornalista Malu Gaspar, do jornal O Globo, vem fazendo ao cobrir um escândalo que envolve um ministro Alexandre de Moraes, sua mulher e um contrato milionário com o Banco Master e as evidências de lobby e advocacia administrativa é que essa receita de jornalismo descreve. O problema é que, no Brasil de hoje, o simples virou raro. E o raro, por contraste, parece extraordinário e por isso oportunisticamente suspeito.
O Brasil virou um país em que as pessoas se engalfinham por causa de comercial de chinelo. Imagine uma pessoa que vai bovinamente a uma loja para comprar uma Havaianas vermelha (em sinal de apoio à empresa dos irmãos Batista. Sim, eles mesmos) tem condições de lidar com jornalismo quando ele cumpre sua função básica? A mesma pergunta se aplica a quem corta as tiras de seu chinelo em retaliação ao comercial esquerdista bancado por uma das empresas mais queridas pelo presidente Lula, seu partido e seu governo? O “jornalismo” virou ponto de fricção porque assumidamente passou a fazer parte da polarização, assumindo um lado e trabalhando para ele. Quando o Jornalismo reaparece em essência causa espanto.
Investigar um ministro da Suprema Corte e os contratos cruzados entre sua família, bancos quebrados, corruptos e toda ordem de promiscuidade legal e institucional vira afronta e traição
Não há nada de sobrenatural no trabalho de Malu. Não há superpoderes, não há truques, não há atalhos. Há método, persistência e uma disposição cada vez menos comum de olhar para os poderosos sem pedir licença, sem reverência e sem medo da aura moral que eles próprios se atribuem. O que transforma reportagens corretas em pontos de disputa é o fato de que muitos dos pares (?) de Malu desistiram de fazer o básico. Ou estão deliberadamente protegendo seu “herói”?
Aliás, se há algo de profundamente atrasado é a obsessão nacional por heróis. É uma herança de subdesenvolvimento moral: precisamos transformar indivíduos em símbolos para não lidar com as instituições. Criamos mitos para não exigir regras. Por isso, resistirei a chamar Malu de heroína. Não porque lhe faltem atos heroicos, mas porque o heroísmo não é melhor definição para o seu grande histórico profissional. E, conhecendo-a, suspeito que ela também recusaria o papel.
Nem sempre o jornalismo brasileiro foi tão apático, cúmplice ou covarde. Em 2004, uma denúncia de corrupção nos Correios, envolvendo uma propina de três mil reais, foi suficiente para acender o pavio de uma investigação que revelou o Mensalão. A imprensa fez seu trabalho. Entrevistou, pressionou, publicou. O Congresso se mexeu, mas foi a persistência jornalística que costurou os fatos, dia após dia, até expor o esquema do primeiro mandato do presidente Lula que comprava o Legislativo com dinheiro público desviado. Anos depois, o mesmo aconteceu com o Petrolão. Houve erros, excessos e disputas, como sempre há. Mas houve jornalismo.
A ruptura veio depois. Entre 2018 e 2019, parte expressiva da imprensa decidiu comprar uma narrativa conveniente: a de que toda investigação relevante era, em essência, uma fraude moral. A “vaza-jato” virou salvo-conduto intelectual para relativizar provas, desqualificar métodos, reabilitar corruptos e corruptores e, sobretudo, redefinir o papel do jornalista. O jornalismo passou a se ver como trincheira antifascista. E, em trincheiras, vale tudo.
Não foi um processo abstrato. Houve confissões explícitas. Em um episódio emblemático, um podcast da revista Piauí, o então diretor da publicação revelou reuniões entre dirigentes de grandes veículos para discutir como barrar um candidato à Presidência, “ainda que fingindo fazer jornalismo”. Fingir. A palavra diz tudo. Entre os presentes, uma única voz se levantou contra o disparate. Era a de Malu Gaspar.
De lá para cá, o ambiente se degradou com rapidez. Editores e executivos passaram a circular como comensais de mesas de advogados-lobistas, sob o eufemismo de “boas relações com fontes”. Pagamentos por participações em eventos e júris foram normalizados, estreitando vínculos monetários perigosos. Repórteres, sempre mal pagos e cada vez mais desprestigiados, passaram a confundir prêmios e homenagens com prova de virtude profissional. Acreditaram que eram celebrados pela grandeza do trabalho, quando muitas vezes eram apenas úteis à narrativa do momento. Tadinhos.
Nesse cenário, investigar um ministro da Suprema Corte e os contratos cruzados entre sua família, bancos quebrados, corruptos e toda ordem de promiscuidade legal e institucional vira afronta e traição. Malu escolheu seguir jornalista. E talvez seja justamente isso que a torne tão incômoda. Porque, ao fazer o que sempre deveria ter sido feito, ela expõe, sem discursos e sem pose, o quanto a profissão se afastou de si mesma.
Feliz Natal. E que o jornalismo aproveite o momento e volte a brilhar.





