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O presidente da Bolívia, Luis Arce, e o ex-presidente Evo Morales participam de um ato em La Paz em agosto, empunhando a wiphala
O presidente da Bolívia, Luis Arce, e o ex-presidente Evo Morales participam de um ato em La Paz em agosto, empunhando a wiphala| Foto: EFE/Martin Alipaz

A reescrita da história virou uma tendência. Mas, mais do que oferecer uma nova perspectiva sobre fatos narrados ao longo de séculos e até milênios, aqueles que estão engajados na missão de apagar o passado e reescrevê-lo parecem não ter limites na imaginação. Evo Morales, o líder cocaleiro que foi presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, foi profícuo em invenções. Morales foi tão bem-sucedido em contar lorotas que, pelo menos na América Latina, talvez ele seja o patrono do movimento.

Nada foi mais simbólico que o fato de Morales ter instituído uma segunda bandeira para a Bolívia, quando em 2009 promulgou uma nova Constituição, que inclusive rebatizou o país. A wiphala, bandeira quadriculada com as cores do arco-íris, é uma clara invenção a partir de crônicas dos conquistadores de que os incas teriam uma flâmula que representava o seu império. Ou melhor, uma bandeira que unia todos os povos nativos que viviam pelo menos desde o Panamá até a Argentina.

A falsificação é tão absurda que sugere que povos que lutavam entre si, que escravizavam os derrotados e que não deixaram evidência alguma de que eram uma espécie de embrião pré-colombiano da Unasul viviam harmonicamente em uma tal Pátria Grande.

Em 2019, desmoralizado e mergulhado em uma crise de legitimidade, Evo Morales tentou roubar a eleição, deixou o país pegar fogo, renunciou fingindo ter sofrido um golpe e esperou a oposição (ressalte-se, incompetente e corrupta) meter os pés pelas mãos para se transformar na vítima e reciclar sua imagem perante o mundo. Deu certo.

No Brasil, os petistas reescreveram a história do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com maestria. O vazamento das comunicações roubadas pelos hackers de “Аraraquara” – que, por uma misteriosa magia, mudou a visão da imprensa e do Supremo Tribunal Federal sobre a Operação Lava-Jato – fez com que Lula deixasse de ser o chefe do maior caso de corrupção da história do Brasil para se transformar em uma vítima de um sistema judicial viciado e herói da democracia.

O transcurso entre a ruína e a glória do petismo já é demasiadamente conhecido para ter que ser relembrado por aqui. O fato que deve ser ressaltado é que, para apagar o passado, o petismo contou com uma amnésia coletiva e voluntária que permitiu a Lula e sua turma voltar ao poder para um terceiro mandato presidencial que se inicia em janeiro.

Lá no Egito, há uma gritaria pelo retorno das relíquias roubadas do país. Eles querem que o Museu Britânico devolva a Pedra de Roseta – o achado arqueológico datado de 196 a.C, que permitiu a decodificação dos hieróglifos. Os egípcios alegam que ela foi roubada, saqueada e blá... blá... blá.

Ignoram que a Pedra de Roseta por séculos jazia sob as areias do deserto e que somente em 1799, por obra e esforço do exército de Napoleão Bonaparte, ela foi encontrada e passou a ser estudada para nos oferecer o que hoje sabemos dela. Em 1801, ela passou para o domínio britânico, como parte do que poderia se chamar de espólio de guerra devido pelos franceses, que perderam.

Há tempos o Egito reclama por suas múmias e outras antiguidades espalhadas pelos museus da Europa e dos Estados Unidos. Mais recentemente, os países africanos começaram a fazer o mesmo movimento. Em 2020, na onda Black Lives Matter, cidadãos africanos chegaram a depredar museus com exibições de artefatos africanos, alegando que os devolveriam para seus donos originais.

Esses ativistas agem como se alguns dos países mais pobres, muitas vezes mergulhados em conflitos sectários e governados por ditadores e corruptos, tivessem sido capazes de proteger, estudar e difundir a riqueza cultural e artística de suas sociedades.

Por mais frio que possa parecer: muito provavelmente, os artefatos que hoje contam o passado de civilizações antigas e culturas tribais possivelmente não existiriam ou estariam ocultos em coleções particulares.

Ninguém com o mínimo de honestidade seria capaz de negar as atrocidades do colonialismo. Mas o período não pode ser limitado à reescrita histórica que se restringe aos pontos negativos e os exacerba. Em casos cada vez mais comuns, anula o que objetivamente jamais poderia ser negado como benefício.

Olham para o passado como se a história fosse uma sucessão de erros e violações. Milênios de erros e crimes que precisam ser pagos por quem vive hoje e quem sequer nasceu.

Os reescritores da história usam fel no lugar de tinta. Enxergam o mundo conforme suas crenças, conveniências, ideologias ou borderôs. Foram (e vão) tão além do razoável que o mundo que eles estão nos apresentando não tem nenhuma relação com a “versão dos vencidos”. É pura invenção.

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