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A máquina jurídica que desaprendeu a sinalizar

Em resumo, a lógica é clara: quando ninguém sabe o que esperar das decisões dos tribunais, todo mundo passa a depender deles para resolver até os conflitos mais simples (Foto: Imagem criada utilizando Gemini/Gazeta do Povo)

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A vida jurídica real – essa que pulsa nas relações cotidianas, nos acordos improvisados, nos conflitos que se desfazem antes de nascer – é muito mais silenciosa do que a que ganha palco nos tribunais. A maior parte das questões simplesmente não chega às cortes, e não por falta de tensões, mas porque as pessoas, de algum modo, vão encontrando meios de seguir adiante. A convivência humana sempre foi feita dessa mistura de intuição prática, prudência e expectativa de que o direito, lá no fundo, tem um norte. É assim que a sociedade funciona quando o sistema jurídico inspira confiança: com pouco barulho e muita autorregulação.

O interessante é que, quando alguém cogita litigar, a primeira parada não é a corte; é o advogado. É ali que se inicia um ritual de prognóstico: qual o cenário provável? Há chance real de êxito? Quanto custa insistir? Quanto custa desistir? É nessa hora que um direito sólido – claro, estável, compreensível – faz o seu trabalho invisível. Se as partes conseguem prever, com margem razoável, o que aconteceria caso fossem adiante, o conflito raramente precisará da chancela de um juiz. As opções se estreitam, quase sempre, a duas: o acordo, que é a solução cooperativa; ou a resignação, que não é submissão, mas reconhecimento de que o sistema jurídico fornece respostas suficientemente legítimas para que a derrota seja tolerável.

Em resumo, a lógica é clara: quando ninguém sabe o que esperar das decisões dos tribunais, todo mundo passa a depender deles para resolver até os conflitos mais simples

Essa resignação discreta é um dos pilares menos comentados da paz social. Para que ela exista, não basta haver leis: é preciso que as instituições jurídicas transmitam uma sensação mínima de confiabilidade. Mesmo quando a decisão futura não é desejada, ela precisa ser crível. O cidadão que aceita perder só o faz porque confia que perdeu dentro de regras reconhecíveis, não dentro de um labirinto arbitrário.

Mas tudo isso se desfaz quando entra em cena um elemento corrosivo: a incerteza judicial. A previsibilidade das decisões – ou, pelo menos, um horizonte minimamente estável de interpretação – é o eixo que sustenta o cálculo racional dos indivíduos em sociedade. Quando as cortes embaralham esse horizonte por meio de decisões erráticas, leituras criativas ou fundamentos voláteis, a primeira parte da engrenagem deixa de funcionar. De repente, ninguém sabe mais o que esperar. E quando ninguém sabe o que esperar, todos começam a testar suas chances.

O resultado é quase automático: multiplicam-se os litígios. Não por alguma súbita agressividade social, mas porque desaparece justamente o mecanismo que filtrava, na origem, a maior parte dos conflitos. Se o advogado já não consegue prever o desfecho provável, se as partes já não conseguem estimar o custo-benefício de insistir, se a resignação deixa de ser racional, então o Judiciário vira a arena natural de qualquer disputa, grande ou pequena. As pessoas deixam de buscar acordos porque não sabem mais em que solo jurídico estão pisando. E deixam de aceitar porque não sabem mais se perderam legitimamente ou apenas tropeçaram na roleta jurisprudencial do momento.

Assim nasce a inflação judicial: um acúmulo crescente de processos, cada um deles fruto de uma falha anterior do sistema em fornecer sinalização normativa clara. E, ironicamente, quanto mais processos chegam, mais difícil se torna manter a previsibilidade – e mais o próprio Judiciário, exausto, tende a oscilar. O círculo vicioso se fecha: a incerteza produz litígios, e os litígios produzem mais incerteza.

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Em resumo, a lógica é clara: quando ninguém sabe o que esperar das decisões dos tribunais, todo mundo passa a depender deles para resolver até os conflitos mais simples. E, quando o Judiciário deixa de ser o último recurso e vira o primeiro impulso, algo está errado. Isso não é um detalhe técnico – é um sinal de que as instituições estão falhando em dar ao cidadão a segurança mínima para viver sua vida sem precisar de um juiz a cada esquina.

Antes de encerrar, vale recorrer a uma estrutura lógica que aprendi com Randy Barnett em The Structure of Liberty. Em vez de partir de abstrações morais ou preferências políticas, Barnett propõe uma análise institucional fundada em constantes da experiência humana. O modelo é simples: dado (given) um traço invariável da natureza social – por exemplo, que as pessoas ajustam seu comportamento com base em expectativas; se (if) determinada condição institucional é satisfeita ou frustrada – como a previsibilidade das normas; então (then) certas consequências se seguem, independentemente da ideologia. É um modo elegante de pensar o direito como um sistema funcional de coordenação de condutas.

Aplicado ao tema deste texto, esse raciocínio leva naturalmente ao passo seguinte. Dado (given) que os indivíduos ajustam seu comportamento com base em expectativas mínimas de estabilidade normativa; se (if) o sistema jurídico deixa de oferecer critérios previsíveis, inteligíveis e coerentes; então (then) a sociedade entra em modo de defesa – e cada conflito, por menor que seja, se transforma numa aposta judicial. Quando o direito perde a capacidade de sinalizar, o litígio deixa de ser exceção e passa a ser regra. E um país em que todos esperam por juízes porque já não esperam mais pelo direito é um país em risco.

Leonardo Corrêa é sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela Universityof Pennsylvania. É co-fundador e presidente da Lexum e autor do livro "A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores".

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Nota: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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