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Liberdade de Expressão e Poder Judiciário: quando quem ataca deveria proteger

A liberdade de expressão existe precisamente para que discursos que violem o bom senso possam ser proferidos. (Foto: Imagem criada utilizando Leonardo AI/Gazeta do Povo)

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Têm sido frequentes os ataques do Judiciário brasileiro à liberdade de expressão. Da proibição de que a Gazeta do Povo publicasse matéria sobre o apoio de Lula a Daniel Ortega, à condenação de Léo Lins a oito anos e três meses de prisão por conta de piadas alegadamente discriminatórias, passando por incontáveis bloqueios de perfis acusados de disseminar fake news. Essa constatação se torna ainda mais preocupante quando se nota que o ordenamento jurídico brasileiro considera a liberdade de expressão um direito fundamental, prevendo-a no art. 5º, incs. IV e IX, e no art. 220 da Constituição. Este dispositivo, a propósito, chega a estabelecer que a manifestação do pensamento não sofrerá restrições. A realidade, porém, está cada vez mais distante da previsão constitucional...

Por que isso acontece? Por que o Judiciário, projetado para ser o guardião dos direitos fundamentais, ataca a liberdade de expressão em vez de protegê-la? Há várias causas. A primeira delas é a incompreensão sobre a importância da livre manifestação do pensamento. Costuma prevalecer o entendimento de que somente as ideias corretas e virtuosas podem ser divulgadas, devendo ser proibidas as que forem erradas e ruins. Essa perspectiva, embora comum, encerra dificuldades graves: quem decidirá quais são as ideias certas e com qual fundamento fará a escolha?

Em nenhum caso a censura se justifica, pois a sociedade sempre será beneficiada com a livre expressão. Mesmo a divulgação de ideias odiosas deve ser defendida. O combate a elas permite o fortalecimento das concepções morais básicas da comunidade

Em uma comunidade plural, marcada pela multiplicidade de valores e interesses, não é possível definir categoricamente quais são as ideias “corretas”. Pessoas de diferentes idades, sexos, formações, aptidões e desejos seguramente apresentarão opiniões variadas sobre o certo e o errado, o bom e o ruim. Suponhamos, porém, que esses obstáculos fossem superados, tendo a sociedade chegado ao consenso de que caberia aos juízes definir as ideias que poderiam ser manifestadas livremente. Nesse cenário, se contássemos com excelentes magistrados, capazes de separar as ideias “corretas e boas”, as quais poderiam circular livremente, das “erradas e ruins”, que seriam proibidas, teríamos resolvido o “problema” da liberdade de expressão? A censura valeria a pena? Certamente não!

John Stuart Mill, em On Liberty, publicado em 1859, apresentou argumentos convincentes contra a censura. Segundo o filósofo inglês, uma ideia proibida poderia ser correta, de modo que a sociedade seria prejudicada com a interdição do debate. Basta pensar no voto universal, ideia consolidada apenas recentemente. Se não fosse possível discuti-la, ainda estaríamos sob um regime de voto censitário.

Por outro lado, se a ideia correta já prevalecesse, a tolerância às críticas permitiria que justificativas ainda mais sólidas fossem apresentadas a favor da tese majoritária. Tome-se, como exemplo, a liberdade de culto, protegida pelo art. 5º, inc. VI, da Constituição. Trata-se de valor aceito pela maioria da sociedade. Permitir que este direito seja questionado levará ao aperfeiçoamento da argumentação em sua defesa.

Tratando-se de ideias parcialmente corretas, a discussão permitiria a refutação dos equívocos e o aprimoramento dos acertos. Apenas o intercâmbio de opiniões permitirá a retificação daquilo que estiver incorreto. A troca de argumentos é o meio mais eficaz para se obter a melhor solução. A sociedade brasileira tem debatido intensamente sobre o porte de armas. Concepções liberais e restritivas continuam em choque. A liberdade de manifestação permitirá que seja corrigida a abordagem limitante atualmente em vigor.

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Em nenhum caso a censura se justifica, pois a sociedade sempre será beneficiada com a livre expressão. Mesmo a divulgação de ideias odiosas deve ser defendida. O combate a elas permite o fortalecimento das concepções morais básicas da comunidade. Assim, embora o comunismo tenha se provado um experimento social fracassado, tendo levado à miséria e à morte, a tolerância em relação a ele permite a formação dos melhores argumentos para combatê-lo. Além disso, o debate às claras serve como freio à radicalização, estimulada pela censura e pela clandestinidade.

Os argumentos até aqui apresentados deixam clara uma dificuldade fundamental: é dificílimo separar as ideias certas das incorretas. Pessoas diferentes terão opiniões diversas sobre o acerto ou desacerto de uma concepção. A posição majoritária será forjada justamente pelo livre debate. Isso basta para demonstrar que a censura é um erro. Neste ponto, poderíamos perguntar se deveria haver algum limite à liberdade de expressão. Entendo que sim.

Em 1969, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Brandenburg v. Ohio. Decidiu-se, então, que o discurso radical e agressivo não pode ser punido, a não ser nos casos em que houver perigo concreto e iminente de atos ilegais. Clarence Brandenburg era o líder local da detestável Ku Klux Klan e contactou um repórter para que cobrisse um comício da organização. Foram proferidos discursos de ódio no evento e Brandenburg foi denunciado com base na lei estadual de Ohio contra a associação criminosa, tendo sido condenado. A Suprema Corte, contudo, reverteu a decisão, afirmando que, de acordo com a Constituição, os discursos odiosos devem ser tolerados, exceto nos casos em que haja perigo concreto e iminente de atos ilegais.

Este critério é superior ao paternalismo que vigora no Brasil. Invocando para si o papel de “editores da sociedade”, conforme declaração recente do ministro Dias Toffoli, os juízes têm interditado o debate e proibido discursos radicais. É preciso entender que a liberdade de expressão existe precisamente para que discursos que violem o bom senso possam ser proferidos. Obviamente, quando se tratar de narrativas abomináveis, como o negacionismo do Holocausto ou a defesa da ditadura do proletariado, não se terá a pretensão de que possa haver veracidade ou acerto naquilo que é divulgado. Crê-se, contudo, que a refutação fortalece os alicerces de uma sociedade livre. Em vez de cercear o discurso, impedindo o debate, o Judiciário brasileiro faria bem se aplicasse o que prevê a nossa Constituição, garantindo aquilo que, já em 1919, no caso Abrams v. United States, Oliver Holmes chamou de “livre mercado de ideias”.

Ricardo Alexandre da Silva, advogado, é mestre e Doutor em Processo Civil e membro e fundador da Lexum.

Nota: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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