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A nova fábula das abelhas: virtudes em público, vícios e benefícios privados
| Foto: Reprodução

Houve um tempo em que se ensinava que as boas ações devem ser praticadas em segredo. “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, de modo que, a tua esmola fique oculta”, disse Jesus, de acordo com o Evangelho segundo São Mateus.

A mensagem é que as boas ações não carecem de exposição: elas devem ser praticadas no íntimo do coração, porque toda generosidade, quando é autêntica e verdadeira, é também gratuita e desinteressada. Por isso mesmo, dar publicidade da própria virtude, até não muito tempo atrás, era visto com reserva, ou mesmo como algo moralmente censurável. Pegava mal. Hoje em dia, desnecessário dizer, não é mais assim. Na verdade já nem é necessária qualquer virtude real, o que importa é a sua simulação e exposição espalhafatosa.

De forma similar, a felicidade real foi substituída pela felicidade fake das fotografias no Instagram, a rede social onde todo mundo é bonito e feliz o tempo inteiro. Na semana passada vi alguém perguntar para um amigo: “Mas e fora do Instagram, está tudo bem?” Parece que já passamos mesmo da etapa em que existia uma vida real, inevitavelmente repleta de dificuldades, desafios e problemas, e uma vida de vitrine. Hoje as pessoas tentam fazer da vida real uma extensão do seu Instagram: para muita gente, a necessidade de se mostrar feliz o tempo inteiro extrapolou os limites das redes sociais. Sua vida real se tornou tão fake quanto o exibicionismo de fotografias cheias de filtros e photoshops do Instagram.

Da ostentação pública da virtude resultam benefícios privados – e a licença para praticar os piores vícios

Millôr Fernandes, em uma de suas frases mais inspiradas recomendou desconfiar de todo idealista que lucra com seu ideal. O idealista bem-sucedido é primo-irmão do profissional da felicidade e do virtuoso de crachá, que adoram ostentar sua alegria e sua pretensa superioridade moral sobre os mortais comuns. Um e outros não estão interessados em praticar o bem; o “bem” que eles praticam é apenas escada, a finalidade é ficar bem na fita e levar alguma vantagem, social ou mesmo econômica.

Os biscoiteiros das redes sociais são assim: proclamam em alto e bom som como são bons e felizes e tudo de maravilhoso que fazem em busca do reconhecimento dos seus pares. Como a maioria desses pares também vive de aparências, a vida se transforma em um incessante comércio de likes, que só é interrompido quando alguém ousa manifestar uma opinião diferente: aí o comércio passa a ser de dedos apontados, ódio, censura e cancelamento.

Nas palavras de um amigo meu, os imbecis se reuniram em “agremiações de iguais, reunidos apenas para falar do que os torna iguais entre si e incompatíveis com tudo que está fora”. Não há sinais de que isso vai passar. Ao contrário, acho que tende a piorar. Graças ao efeito de matilha produzido pelas redes sociais, os invejosos, os tolos, os incompetentes, os despreparados estão sentindo (talvez pela primeira vez na História da humanidade) o gostinho de ter poder – e farão o que for necessário para preservar esse poder.

Primeiro veio a fase de perseguir e esfolar qualquer pessoa minimamente preparada que ousasse discordar do pensamento hegemônico, porque qualquer opinião independente vinda de alguém mais preparado é percebida como ameaça pelos idiotas que ocuparam o poder na mídia e nas universidades. Quando os “fascistas” são silenciados ou excluídos socialmente, vem a segunda fase: os virtuosos de crachá começam a se cancelar uns aos outros diante de qualquer diferença de opinião. Já está acontecendo. E nada de bom pode vir daí.

Na célebre “Fábula das Abelhas”, publicada em 1714, Bernard de Mandeville demonstrou que o egoísmo de cada indivíduo pode resultar em benefícios coletivos para a sociedade. Mais de três séculos mais tarde, a turma da lacração transformou o “Vícios privados, benefícios públicos” em “Virtudes em público, vícios e benefícios privados”. Da ostentação pública da virtude resultam benefícios privados – e a licença para praticar os piores vícios.

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Por puro esquecimento, acabou ficando de fora do meu último artigo, “Greta no Senado e outros retratos de nossa época”, a impressionante, corajosa e heroica manifestação de artistas do bem que não hesitam em colocar as próprias vidas em risco para combater a ditadura genocida. No dia 7 de setembro, o grupo “Salvadores Dali” (e "amigues") lançou no Youtube o clipe com uma versão brasileira da secular canção italiana (que aliás faz parte da trilha sonora da edificante série espanhola “La Casa de Papel”, que alça ladrões à condição de heróis e exemplos).

Em um trabalho classificado como “transgressor”, o grupo canta, com ar muito sério de quem está realmente disposto a se sacrificar pela democracia: “Suas mentiras e todo ódio custaram vidas que foram embora pela sandice e desamor. (...) Darei minha vida para expulsar o ditador”:

É este o tamanho do buraco onde o Brasil se meteu.

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