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Moisés Naím, autor de “A vingança do poder”
Moisés Naím, autor de “A vingança do poder”| Foto: Divulgação

Em 2013, o cientista político venezuelano Moisés Naím lançou o livro “O fim do poder”, no qual apresentava uma tese ousada: "O poder – a capacidade  de conseguir que os outros façam ou deixem de fazer algo – está passando por uma transformação histórica. Ele está se dispersando cada vez mais, e os tradicionais atores (governos, exércitos, empresas e sindicatos) são confrontados com novos e surpreendentes rivais – alguns  muito menores em tamanho e recursos”.

Dez anos depois, Naím está lançando um novo livro, desdizendo em parte o que havia dito antes (lembrando a canção "Metamorfose ambulante"): “A vingança do poder – Como os autocratas estão reinventando a política do século 21 para enfraquecer os alicerces da democracia”.

O título e o extenso subtítulo (uma tendência no mercado editorial brasileiro) já dizem tudo. Segundo autor, o vento virou: hoje estaríamos vivendo um novo contexto de concentração do poder, movimento que corrói os fundamentos da sociedade livre com base em três pilares: populismo, polarização e pós-verdade.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nos dois casos, Naím estava certo, mas só até certo ponto. As instituições tradicionais do poder foram efetivamente abaladas, até mesmo em função das novas tecnologias: é impossível exagerar o papel das redes sociais nesse processo, tanto que agora é visível o esforço para censurá-las.

Mas isso não impediu que projetos políticos autoritários continuassem sendo cultivados e implementados, com diferentes matizes ideológicos.

Os dois livros são cheios de insights interessantes sobre transformações na geopolítica internacional, mas também apresentam os mesmos problemas e deficiências.

Por exemplo, o autor joga no mesmo balaio países e governantes muito diferentes, da esquerda e da direita, sem atentar para as especificidades políticas e culturais de cada país, nem – o que é mais grave – para as diferenças profundas (inclusive nas consequências econômicas e na garantia das liberdades) entre governos de direita e de esquerda.

Em uma entrevista recente, Naím se justificou: "Já não me importa se é direita ou esquerda, norte ou sul. O que importa é se alguém é democrata e respeita os freios e contrapesos, as instituições, sem abusar do poder e sem fazer manobras para ficar nos cargos públicos por mais tempo do que o determinado pela eleição. O que estamos vendo em todo o mundo é essa tendência de chefes de Estado fazerem as manobras constitucionais, truques necessários para permanecerem no poder uma vez que chegam ali. Isso sempre existiu, mas agora se tornou mais viável."

Faz algum sentido, mas o fato é que, em uma espécie de maniqueísmo que se esforça para parecer isentão, Naím parece dividir os governos entre aqueles que lutam pela liberdade e pela democracia e aqueles cujo foco é a concentração de poder a qualquer custo.

Mas o que acontece quando os governos que adotam o discurso da defesa da democracia são justamente aqueles que censuram e buscam se perpetuar no poder a qualquer preço? O autor não responde, preferindo aderir à narrativa da democracia de um lado só, da política como uma disputa entre o bem e o mal - contribuindo, de certa forma, para a polarização que ele afirma combater.

“Líderes populistas se retratam encarnando a vontade do povo. Qualquer posição pode ser apresentada como pura defesa do povo, e qualquer voz contrária pode ser desqualificada como promotora dos objetivos de uma elite corrupta”

Não surpreende, portanto, que Naím cite o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro como exemplos da reação autocrática ao processo de dispersão de poder examinado em seu livro anterior (para parecer justo, ele também inclui na lista políticos de esquerda, como o russo Vladimir Putin, o mexicano Andrés López Obrador e o ditador venezuelano Nicolás Maduro.).

Curiosamente, muito do que Naím escreve sobre os autocratas se aplica à perfeição a governantes que ele apoia - e aparentemente ele não se dá conta dessa contradição.

“O que estamos vendo hoje é uma variante revanchista que imita a democracia enquanto, indiferente a qualquer limite, continua a miná-la”, escreve. “A sobrevivência da liberdade não está garantida”. Pois é.

Naím acerta quando escreve o óbvio: quando afirma que o populismo, a polarização e a pós-verdade estão sendo usadas como ferramentas para desmantelar por dentro as instituições democráticas e as restrições ao poder Executivo.

Ele também acerta ao alertar que o populismo é uma estratégia para conquistar e exercer o poder, o que não é exatamente uma novidade: “Líderes populistas se retratam encarnando a vontade do povo”, escreve. “Qualquer posição pode ser apresentada como pura defesa do povo, e qualquer voz contrária pode ser desqualificada como promotora dos objetivos de uma elite corrupta”.

De novo: pois é.

Supreendentemente, o autor não parece capaz de constatar que essas ferramentas vêm sendo intensamente usadas por governos que se arvoram em defensores da democracia, em todo o planeta, como o apoio de uma estranha aliança entre os metacapitalistas, a esquerda progressista e as juristocracias emergentes. É esta a novidade que merece ser examinada e analisada. Mas "A vingança do poder" sequer arranha esse tema.

Naím cita como comportamento típico dos novos autocratas a criminalização de rivais políticos - como se não fosse exatamente este o comportamento dos autointitulados defensores da democracia.

Escreve Naím: "Os populistas são propensos a transferir o confronto com seus rivais políticos da arena eleitoral para os tribunais, onde é provável que tenham juízes amigos e prontos a colocar na cadeia membros incômodos (ou populares demais) da oposição. (...) Eles passam a negar a legitimidade básica do direito que tem o outro lado de ao menos disputar o poder, dispensando a típica norma democrática que vê a alternância em um cargo como pilar normal, natural e saudável da coexistência democrática”

E ainda: “[Os líderes populistas] requerem nada menos que o apoio incondicional do povo ao governo. Nessas circunstâncias, opor-se ao governo é semelhante à traição. (...) À medida que consolidam seu poder, ocultam os planos autocráticos atrás de muros de sigilo, subterfúgios pseudolegais, manipulação da opinião pública e repressão de críticos e adversários. (...) Os adversários políticos não são compatriotas com opiniões diferentes, mas infratores da lei cujo lugar é na prisão".

Parece até que ele está escrevendo sobre... deixa pra lá. Naím conclui: “Quando a máscara cai, já é tarde demais”. Esperemos que um dia todas as máscaras caiam, e que não seja tarde demais.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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