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Cuidado com o golpe do gás do Uber
| Foto: Reprodução Instagram

Em novembro do ano passado, em Santos, um motorista de aplicativo ofereceu a uma passageira um recipiente com álcool, para higienizar as mãos. Minutos depois, ela ordenou que ele interrompesse a corrida, desembarcou e tirou várias fotografias do veículo.

Horas depois, as imagens estavam circulando no Facebook e no Instagram, acompanhadas da denúncia: o motorista teria tentado dopar a passageira com um gás. Ela disse que sentiu um cheiro estranho, ficou com a visão turva e teve a sensação de tontura e asfixia: “Se eu inalasse um pouco mais, teria apagado completamente”, relatou. A história viralizou.

Pegando carona na repercussão das postagens, outra mulher foi além, revelando a identidade do motorista, expondo seu perfil nas redes sociais e fornecendo até seu endereço (“Esse pilantra mora na Rua...”).

Avisado por amigos e compreensivelmente assustado, o motorista procurou uma delegacia, onde ficou comprovado que o “gás” era álcool com aroma de canela, um produto vendido em supermercados que não apresenta qualquer risco à saúde.

O motorista processou as duas mulheres por danos morais. A sentença saiu há pouco menos de duas semanas, no último dia 13 de julho. Elas foram condenadas a indenizá-lo em R$ 10 mil cada uma.

Um trecho da sentença da juíza: "As condutas das requeridas foram desmedidas, abusivas e manifestamente ilegais, tendo em muito extrapolado a preocupação com o bem-estar de terceiros desconhecidos, mas expressaram uma fúria, para adentrar no propósito injustificável e inaceitável de denegrir a imagem e reputação do autor aos integrantes da sociedade local, sem provas concretas".

O episódio diz muito sobre o nosso tempo.

Sobre o uso irresponsável das redes sociais:

As duas mulheres não se preocuparam com as consequências de suas postagens. Sequer pensaram nos riscos envolvidos na exposição da identidade do motorista. Ele chegou a ser suspenso pela empresa. Houve ameaças à sua integridade física e à de sua família. Poderia ter sido linchado. Mesmo que isso não tenha acontecido, o sofrimento causado e os danos à sua imagem são incalculáveis. Pessoalmente, acho que o valor da indenização foi baixo (ainda assim, a juíza está de parabéns, pelo efeito pedagógico da sentença).

Sobre a transformação das redes sociais em tribunais de justiça sumária:

Hoje, quando alguém se sente vítima de um crime, não procura uma delegacia: vai para as redes sociais. Delegacia dá muito trabalho, e a solução do caso demora. Nas redes sociais não: o acusado é condenado de antemão, sem direito a defesa, nem contraditório; a vítima tem sempre razão; e a sentença é cumprida imediatamente por um exército de “linchadores do bem”. Muito mais prático.

Sobre o clima de denuncismo que vivemos e suas consequências sociais:

As consequências de uma acusação falsa não se limitam à vida pessoal do acusado, tendo repercussões sociais muito maiores. Para ficar no tema do artigo: nos últimos meses pipocaram incontáveis histórias sobre o “golpe do gás do Uber” nas redes sociais. Dezenas de mulheres já relataram terem ficado tontas após sentir um “cheiro estranho” dentro de um veículo de aplicativo. Nenhum desses relatos foi comprovado, ao contrário: todos os especialistas em toxicologia consultados em reportagens sobre o tema praticamente descartaram a possibilidade de ocorrer esse tipo de sedação imediata pelo ar.

Hoje é muito fácil prejudicar um desafeto pessoal ou um adversário político:  basta fazer uma acusação falsa nas redes sociais: logo milhares de inocentes úteis e a mídia compartilharão a denúncia

Ou seja, tudo indica tratar-se de mais uma lenda urbana. Mas é uma lenda urbana que prejudica toda a classe de motoristas de aplicativo – e contribui para criar um clima de paranoia entre as mulheres. Em Curitiba mesmo, uma mulher já pulou de um carro em movimento após se assustar com uma bombinha de asma do motorista, colocando a vida em risco. E um caso similar ao de Santos já aconteceu no Rio de Janeiro.

(Sobre o caso acima, uma internauta comentou, com rara sensatez: "Duas coisas vão acabar acontecendo com essa história do 'gás que faz desmaiar' no Uber: uma mulher vai ser realmente vítima de algo e vão achar que é mentira; um motorista vai ser linchado pela mentira de alguém. E cada um que compartilha essas fanfics vai ser responsável.")

Sobre o impacto na atividade profissional, basta dizer que, diante de denúncias semelhantes em Recife, a entidade de classe local teve que se pronunciar, divulgando a seguinte nota:

A AMAPE - Associação dos Motoristas e Motofretistas por Aplicativos de Pernambuco, vem a público esclarecer:

1 - Está circulando nas redes sociais, DESINFORMAÇÃO acerca de supostos casos de tentativa de intoxicação com gás, em carro de aplicativo.

2 - Além de informações desencontradas, se percebe claramente que não há nenhum tipo de prova material.

3 - Temos recebido relatos de exposição de motoristas, sem provas, em redes sociais, o que caracteriza crime de calúnia contra estes profissionais, além da divulgação de informação falsa.

4 - Uma plataforma, informou, através de posicionamento, que até agora, só existe um caso, no Rio Grande do Sul, que teve o inquérito encerrado por falta de prova.

5 - Por isso, nossa orientação é que os motoristas de aplicativos de Pernambuco gravem em áudio e vídeo, todas as viagens.

6 - Vale uma reflexão: o gás não afetaria também o motorista?

Sim, chegamos ao ponto em que a viralização de uma denúncia falsa leva a uma situação em que passageiros e motoristas são orientados a “gravar em áudio e vídeo” todas as suas viagens, como se estivessem participando de operações policiais.

É esta a sociedade em que queremos viver?

Tudo que escrevi acima independe da intenção das duas mulheres condenadas em Santos. Se elas partiram do pressuposto de que o motorista era culpado, eu parto do pressuposto de que elas realmente acreditavam no que estavam dizendo. Isso não muda o fato de que houve um crime, bem demonstrado pela juíza do caso.

Mas há outro fator importante a considerar aqui. Nem sempre o uso irresponsável das redes sociais, a transformação dessas redes em tribunais de justiça sumária e o clima de denuncismo que comentei aqui acontecem de forma espontânea. Eles podem ser ferramentas de uma estratégia deliberada, ou armas usadas por milícias de justiceiros sociais a serviço de uma agenda política. Ainda mais em ano eleitoral.

Hoje em dia é muito fácil prejudicar um desafeto pessoal ou um adversário político: basta fazer uma acusação falsa nas redes sociais, que pode ser rapidamente orquestrada em um pequeno grupo de Whatsapp. Dependendo da fama ou da importância do acusado, logo dezenas, centenas ou até milhares de inocentes úteis compartilharão a denúncia.

A própria mídia, aliás cada vez mais parecida com as redes sociais na irresponsabilidade, embarcará na onda, noticiando o caso e amplificando o potencial destrutivo da calúnia, arruinando vidas, carreira e reputações. Por mais que tudo venha a ser desmentido mais tarde, o mal feito jamais será reparado, e suas consequências jamais serão completamente revertidas.

Isso já está acontecendo, de forma quase rotineira, e vai piorar. Tempos sombrios.

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