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Dois bodes
| Foto: Reprodução Instagram

O artigo de hoje é sobre dois bodes.

O bode expiatório

A expressão “bode expiatório” se refere a uma pessoa ou grupo sobre o qual recaem culpas ou responsabilidades alheias. Ele costuma ser impiedosamente massacrado e esfolado, até que se prove a sua inocência. Mas se e quando, enfim, a verdade vier à tona, ninguém pede desculpas a quem foi injustamente acusado e punido. O que importa aqui não é a verdade nem a justiça, mas um ritual simbólico de expiação coletiva.

A origem da expressão é interessantíssima, evocando uma antiga tradição do povo hebreu. Segundo o Levítico, um dos livros do Antigo Testamento, no Yom Kippur, o Dia do Perdão, os judeus organizavam um conjunto de rituais com o objetivo de acalmar a ira divina e purificar a nação de seus pecados.

Um desses rituais envolvia a participação de dois bodes. Por sorteio, um deles era sacrificado juntamente com um touro, e seu sangue era usado para tingir as paredes do templo de Jerusalém. O outro era abandonado no deserto para morrer e ser recolhido pelo anjo caído Azazel, depois que um sacerdote punha as mãos na sua cabeça e confessava os pecados da comunidade.

Este era o bode expiatório, que tinha a função simbólica de assumir e carregar todos os pecados de um povo. Como os seus descendentes hoje, ele não tinha culpa alguma. Bodes expiatórios não são escolhidos por serem culpados, ao contrário: são escolhidos para carregar a culpa alheia.

(Nesse sentido, curiosamente, Jesus Cristo pode ser considerado o maior de todos os bodes expiatórios da História: ao puxar para si os pecados da humanidade, ele se ofereceu em sacrifício deliberado como forma de expiação alheia.)

O bode expiatório teve origem em uma antiga tradição do povo hebreu
O bode expiatório teve origem em uma antiga tradição do povo hebreu

Se a expressão “bode expiatório” atravessou os séculos e sobrevive até hoje, é porque o impulso de atribuir a outrem a responsabilidade pelos nossos infortúnios, derrotas e fracassos faz parte da natureza humana.

O problema é quando este impulso é manipulado e colocado a serviço de uma agenda política e ideológica – o que, no extremo, pode levar a consequências trágicas, como a perseguição dos judeus na Alemanha nazista ou a marginalização de outras minorias (étnicas, sexuais, políticas ou religiosas), a quem se atribuiu a culpa pelo desemprego, pela crise econômica ou pela criminalidade, em diferentes momentos da História.

Se a expressão “bode expiatório” atravessou os séculos e sobrevive até hoje, é porque o impulso de atribuir a outrem a responsabilidade pelos nossos infortúnios, derrotas e fracassos faz parte da natureza humana.

Mas não é preciso ir tão longe. Em uma situação qualquer de crise econômica, a manipulação política do fenômeno do bode expiatório pode convencer pessoas comuns de que alguém – por exemplo, o presidente do Banco Central de um país – ou um grupo de pessoas – por exemplo, os eleitores do candidato derrotado na última eleição – são os verdadeiros responsáveis por todas as mazelas da nação.

Para governantes que vivem à procura de bodes expiatórios, o truque é simples e surpreendentemente eficaz, atendendo a um triplo objetivo.

Primeiro, o governo se exime de qualquer responsabilidade pela crise; se as coisas vão mal, a culpa é do bode expiatório. Segundo, ele desvia o foco dos problemas verdadeiros criando problemas falsos (como, por exemplo, uma suposta e permanente ameaça à democracia). Terceiro, mantém a sociedade dividida, perpetuando a narrativa do “nós contra eles” que transforma metade dos cidadãos em alvos a perseguir e abater.

O bode na sala

Conta a lenda que, tempos atrás, um chefe de família estava cansado das reclamações incessantes da esposa e dos filhos, que viviam em pé de guerra.

Após consultar um sábio, ele amarrou no centro da sala, que não era grande, um bode imundo – que, além de malcheiroso, tornou caótico o ambiente doméstico, que já estava insuportável.

A situação só piorou: o bode destruiu os móveis e vários objetos de decoração, sem falar na sujeira. Todos na casa passaram a odiar o pobre herbívoro.

Uma semana depois, a conselho do mesmo sábio, o homem tirou o bode da sala e limpou a casa. A esposa e os filhos vibraram de contentamento e pararam de reclamar, porque nada parecia pior que a lembrança dos problemas causados pelo bode. A família passou a viver em harmonia.

O bode na sala: nada é tão ruim que não possa piorar
O bode na sala: nada é tão ruim que não possa piorar

Como acontece com o bode expiatório, bodes na sala também são usados por governos como artimanhas para implementar suas agendas. O mecanismo psicológico é igualmente simples e eficaz: em um cenário já péssimo, apresenta-se uma alternativa ainda pior, gerando mais conflitos e tumulto.

O governo se apresenta então como mediador, e resolve o problema tirando o bode da sala. O que originalmente parecia horrível se torna palatável na comparação com o trágico. Entre os dois estragos, fica-se com o menor.

Na política, as coisas não são boas ou ruins em termos absolutos: essa avaliação dependerá sempre de uma comparação tácita com as alternativas reais à mão.

Por exemplo, o mercado pode considerar péssimo o ministro da Fazenda de um determinado país. Planta-se então o boato de que alguém ainda pior está de olho no cargo.

O mercado passa então a torcer pelo ministro que ele originalmente abominava, porque as coisas sempre podem piorar. Se a alternativa ao ministro A é um ministro B que causará um estrago ainda maior na economia, melhor apoiar o ministro A.

Na política, as coisas não são boas ou ruins em termos absolutos: essa avaliação dependerá sempre de uma comparação tácita com as alternativas reais à mão.

Se colocam um bode na sala, a prioridade passa a ser tirar o bode. A barganha passa a ser aceitar algo ruim para eliminar algo péssimo. Diante de um cenário desesperador, a gente tende a achar aceitável um cenário que é apenas horrível.

É por isso que, diante de uma eventual crise econômica e da incapacidade de resolvê-la, recorrer estrategicamente ao bode na sala pode ser um truque bastante eficaz para o governo, que inventa um problema maior e o elimina, como se isso fosse um grande mérito.

Todos ficam felizes com o fim do problema maior (artificialmente criado) e se esquecem que o problema real continua lá, a ser resolvido.

Encontrar os dois bodes não é tarefa difícil para um governo: sempre haverá quem sirva de bode expiatório, como sempre haverá alguém ou algum tema que se preste ao papel de bode na sala. Pode até dar certo, mas por quanto tempo?

Um governo mais empenhado em encontrar bodes em quem jogar a culpa (ou em bodes que distraiam a população) do que em resolver os problemas reais do país corre o risco de virar ele próprio um bode – um bode expiatório, que se desejará responsabilizar e afastar, ou um bode na sala, com o qual se tornará impossível conviver.

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