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A pergunta que dá título a este artigo foi feita pelo presidente do Brasil na recente cúpula dos BRICs, no Rio de Janeiro. Nas entrelinhas, ela sugere que a hegemonia do dólar é arbitrária e poderia ser derrubada por uma canetada dos líderes dos países emergentes que integram os BRICs – alinhados a (ou governados por) regimes autoritários, em sua maioria.
Não é bem assim. Questionar as razões da centralidade do dólar sugere desconhecimento, sincero ou falso, dos mecanismos que sustentam o status da moeda americana. A proposta parte de uma premissa ao mesmo tempo simplista e equivocada.
A adoção do dólar como moeda de referência global, usada em transações internacionais, reserva de Bancos Centrais e precificação de commodities, não se deu por capricho, nem por decreto autoritário, nem por deliberação em um fórum qualquer – mas como resultado de um processo histórico e geopolítico complexo, que refletiu as transformações da economia do planeta nos últimos 80 anos.
Desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, o dólar se consolidou em função da confiança na economia americana, da liquidez de seu mercado financeiro e do soft power cultural do país.
Se a moeda sobreviveu a inúmeras guerras, crises, reformas monetárias, recessões globais e mudanças tecnológicas, foi por causa da robustez do sistema americano e da falta de alternativas confiáveis. Nenhuma outra moeda do planeta oferece o mesmo conjunto de segurança, liquidez, aceitação e estabilidade.
O vislumbre de uma capitalização política passageira está se sobrepondo à real preocupação com o bem-estar dos brasileiros comuns
Mas o problema da pergunta não é revelar desconhecimento desse processo histórico orgânico e dos fundamentos do sistema financeiro global: é também ignorar os riscos envolvidos em qualquer tentativa de desdolarização ideologicamente motivada, como a proposta de criação de uma moeda comum para os BRICS, capitaneada pelo Brasil.
Trata-se de uma fala problemática que, se for levada adiante, pode comprometer severamente a já precária estabilidade econômica do nosso país. Tanto é assim que a retomada da discussão sobre a moeda dos BRICs – em um momento já bastante delicado na relação entre Brasil e Estados Unidos – soou como uma provocação, precipitando a decisão de Donald Trump de taxar as importações de produtos brasileiros em 50%, a partir de 1º de agosto.
À motivação política – a perseguição judicial de Jair Bolsonaro e seus apoiadores, um tema sensível a Trump – somou-se a motivação econômica, e a mensagem do presidente americano foi clara: parem enquanto é tempo, porque ainda pode piorar muito.
Como não foi o primeiro aviso, chega a ser assustador que a diplomacia brasileira não estivesse preparada para o anúncio. Ainda mais preocupante é a anunciada opção de peitar Trump – diferentemente do que fizeram os governos de todos os outros países atingidos por tarifas, inclusive aqueles governados pela esquerda, que buscaram a via da negociação.
Sinal de que o vislumbre de uma capitalização política passageira, baseada na narrativa da defesa da soberania, está se sobrepondo à real preocupação com o impacto da deterioração da economia no bem-estar dos brasileiros comuns.
As razões da hegemonia
Diversos fatores combinados determinam que o dólar seja a espinha dorsal do sistema financeiro global, inviabilizando, na prática, iniciativas como a desdolarização proposta pelos BRICs.
A robustez da economia americana, com um PIB de cerca de US$ 25 trilhões em 2024, garante que o dólar seja amplamente aceito. Agentes econômicos confiam no dólar como “porto seguro” e na capacidade americana de honrar suas obrigações financeiras. Não se pode dizer o mesmo da China ou da Rússia, colegas de Brasil nos BRICs.
O Federal Reserve, o Banco Central americano, é uma instituição independente e confiável, capaz de gerenciar crises monetárias. Essa confiança institucional sustenta a estabilidade do dólar, especialmente em comparação com moedas de economias emergentes, que enfrentam maior volatilidade e são menos seguras.
O sistema financeiro global, incluindo bancos, Bolsas de Valores e sistemas de pagamento como o SWIFT, é fortemente atrelado e integrado ao dólar. Essa infraestrutura inviabiliza a adoção de outra moeda como referência, o que exigiria uma reformulação brutal de sistemas e contratos, com custos de transação elevadíssimos.
Por fim, o dólar se beneficia de um “efeito de rede”: quanto mais ele é usado, mais conveniente se torna. Bancos Centrais mantêm cerca de 60% de suas reservas em dólar, e a moeda é usada em quase 90% das transações internacionais. Essa ampla aceitação cria uma inércia que dificulta a adoção de alternativas.
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Os riscos envolvidos
Abandonar o dólar traria riscos significativos para o Brasil, que depende de exportações e já enfrenta desafios fiscais gigantescos. Os Estados Unidos já têm um histórico de impor sanções econômicas contra nações que desafiam o dólar.
Tais medidas podem incluir tarifas, restrições de acesso a mercados financeiros globais ou exclusão do sistema SWIFT, que processa transações em dólares, como já ocorreu com Irã e Rússia.
Desafiar a centralidade do dólar também pode levar investidores internacionais a sair do país, especialmente levando em conta nosso histórico de instabilidade econômica e jurídica. A fuga de capitais, como já ocorreu em crises passadas, deve elevar a inflação e forçar aumentos nas taxas de juros, comprometendo o crescimento econômico.
A hegemonia do dólar pode um dia acabar, mas não será com slogans como o inacreditável “Desdolarizai-vos”, nem com discursos inflamados e lacradores. Questionar o papel do dólar sem compreender os fundamentos do sistema financeiro internacional é um erro estratégico, resultado mais de um desejo político do que de uma estratégia realista.
Em vez de tentar reinventar o sistema financeiro global na base da retórica, os governos dos países emergentes deveriam fortalecer suas instituições, promover estabilidade fiscal, investir em segurança jurídica e buscar competitividade — condições que, no futuro, podem permitir um maior protagonismo monetário.




