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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Guerra ao terror

De que lado você está?

As chamadas facções evoluíram ao nível de insurgência armada, com domínio territorial consolidado. (Foto: Ronald Peña / EFE)

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A operação policial realizada na terça-feira no Rio de Janeiro explicitou que está em curso uma guerra, na qual as partes em conflito são, de um lado, a força legítima do Estado e, do outro, o poder paralelo das facções criminosas que dominam extensas áreas da cidade.

Não há mais como negar: as chamadas facções evoluíram ao nível de insurgência armada, com domínio territorial consolidado, poder de fogo superior ao de muitos exércitos latino-americanos e uma agenda política clara: substituir o Estado onde ele se omite, impondo à população um regime de terror.

A taxa de homicídios nessas áreas é 400% maior que a média nacional. Crianças crescem ouvindo rajadas como trilha sonora; adolescentes veem o tráfico como única carreira viável. "Ou você entra pro movimento, ou vira alvo", resumiu um ex-traficante entrevistado pela BBC, em 2024.

Só naquele ano, o Comando Vermelho foi responsável por 68% dos homicídios na capital fluminense, segundo o ISP-RJ. Foram mais de 1.000 mortes violentas, a maioria de jovens entre 15 e 29 anos. Mas esses números não contam a história toda.

O CV não é uma quadrilha; é um poder político-territorial que controla comunidades inteiras, impõe toque de recolher, cobra taxas de comerciantes e exerce um domínio armado sobre milhões de cidadãos. As facções se tornaram verdadeiros governos paralelos, com polícia, tribunal e serviço social próprios. Não são vítimas, são agressores, e infelizmente agressores armados só param quando são parados.

Quando uma organização criminosa dita as regras à população, é como se o Estado deixasse de existir para essas pessoas. Quando facções passam a decidir quem vive ou morre, quem pode abrir um comércio, ou mesmo quem entra ou sai de uma comunidade, o Estado já perdeu sua autoridade.

Nesse sentido, a operação de terça-feira teve um caráter simbólico: mostrar que o Estado ainda não desistiu nem se rendeu, que ainda acredita ser possível libertar esses territórios da lei da selva. Porque o poder paralelo do CV ameaça não apenas a segurança pública, mas o próprio conceito de cidadania.

Em áreas dominadas, o voto é controlado, a circulação é vigiada e a população vive sob leis impostas pelo fuzil. Forças policiais não entram sem autorização. O Estado precisa, portanto, recuperar o espaço perdido – não apenas com o uso da força, evidentemente, mas também com justiça, serviços públicos e presença permanente. Mas o confronto é uma etapa inevitável.

Para surpresa de ninguém, tentaram emplacar mais uma vez a narrativa de massacre de inocentes, como se inocentes andassem armados até os dentes

O combate às facções também faz parte da defesa da democracia. Não há democracia possível onde o cidadão teme mais o traficante do que confia na polícia. Falo da democracia que se vive concretamente nas ruas e nas comunidades, não nos discursos de gabinete de políticos populistas e intelectuais virtuosos.

Ainda que as imagens de jovens combatentes do tráfico mortos gerem repulsa em muitas pessoas – como geram repulsa quaisquer imagens de corpos de soldados em qualquer guerra – defender a operação é defender um princípio básico de qualquer democracia moderna: o monopólio legítimo da força pelo Estado.

Nenhuma democracia sobrevive quando o Estado abdica de seu dever de usar a força legítima para garantir a lei. Exercido dentro dos limites da legalidade, o monopólio da força é o que distingue civilização de anarquia. Enquanto o Brasil se comportar como se combatesse bandidos comuns – e não narcotraficantes insurgentes – seguirá perdendo territórios, vidas e soberania.

A operação de terça-feira e seus desdobramentos - com a virtual paralisação da cidade - demonstrou que o CV já está em condições de desafiar abertamente o Estado. O CV e outras facções se fortaleceram, ampliaram seu domínio e estão no rumo de se consolidar como poderes políticos de fato, negociando com governos, impondo candidatos, controlando votos. Já está acontecendo.

A criminalidade se institucionaliza; deixa de ser exceção para ser rotina. A legitimidade estatal, por sua vez, se fragiliza: se o morador se acostuma a pedir autorização ao traficante para entrar ou sair de casa, o Estado já perdeu. Permitir que esse modelo prospere significa aceitar que partes do país estão fora do alcance da lei.

É verdade, por outro lado, que foi o Estado brasileiro quem abandonou essas comunidades por décadas, ficando ausente na educação, na saúde, no saneamento. O vácuo foi preenchido pelo crime organizado, que oferece “serviços" em troca de lealdade: cestas básicas, enterros bancados, Wi-Fi pirata. A ausência do Estado criou o terreno fértil para o império da criminalidade. Quebrar esse ciclo exige mais do que assistencialismo – exige desmantelar a estrutura militar das facções. E isso só se faz com enfrentamento direto.

Para surpresa de ninguém, tentaram emplacar mais uma vez a narrativa de massacre de inocentes, como se inocentes andassem armados até os dentes. Sinal de que o Brasil precisa restabelecer suas fronteiras morais. Quando o crime se torna rotina e o combate ao crime é tratado como escândalo, algo importante já se perdeu.

O Brasil não precisa de mais estudos lacradores de sociólogos que não vivem em comunidades. Precisa de coragem para nomear e combater o inimigo

Mas, fora da grande mídia e das redes sociais, o fato é que a operação foi aplaudida pela maior parte da população – sobretudo pelas pessoas comuns que acordam cedo para trabalhar e estão cansadas de viver com medo. Isso porque o terror imposto aos moradores é real e diário.

Moradores de comunidades dominadas convivem com ameaças constantes, execuções sumárias e controle total sobre o seu cotidiano, do volume da música que se ouve até o horário em que é permitido sair de casa.

Há quem romantize as facções, retratando-as como “resistência social”. Essa é uma das mentiras mais cruéis. O tráfico recruta e destrói gerações inteiras. Meninos de 10, 12 anos, são cooptados como “olheiros” ou “aviõezinhos”, iniciando uma vida sem retorno. Meninas recém-entradas na adolescência são seduzidas por bandidos ou entregues como "prêmio" a chefes do tráfico. As escolas, quando estão abertas, funcionam sob medo. Professores não podem denunciar o aliciamento.

Muitos moradores apoiam em silêncio a entrada da polícia: eles entendem que a operação não foi contra os pobres, mas a favor dos pobres, que são as maiores vítimas do domínio criminoso.

O país precisa compreender, também, que a violência de hoje é o preço da negligência de ontem. O verdadeiro atentado aos direitos humanos é permitir que crianças cresçam sob o domínio de traficantes. O combate ao crime organizado é uma questão de sobrevivência nacional, não de retórica ideológica.

O Brasil não precisa de mais estudos lacradores de sociólogos que ostentam virtude porque não vivem em comunidades. Precisa de coragem para nomear o inimigo e de vontade real de derrotá-lo. Enquanto tratar insurgentes como criminosos comuns, seguirá pagando com sangue: de policiais, de crianças, de idosas assassinadas e motoristas queimados vivos em ônibus.

Nesta guerra, é preciso escolher um lado, porque a omissão é cúmplice da barbárie. A pergunta necessária é: de que lado você está? Do lado de quem impõe toques de recolher, manda fechar comércio e escolas e transforma bairros inteiros em prisões a céu aberto? Ou do lado do Estado que, enfim, decidiu combater o monstro que ele próprio, por ação e omissão, ajudou a criar?

Voltarei ao tema.

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