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Na pele da imprensa
| Foto: Reprodução

– Meritíssimo, tem uma entrevista aqui que eu acho que apresenta indícios concretos de falsidade de imputação. Olha só essas declarações que o entrevistado deu!

– Se tem indícios, vamos responsabilizar o jornal que publicou. Liberdade da expressão não se confunde com o direito de dizer mentiras. E o nosso dever é resguardar a liberdade de expressão, sem admitir a censura em hipótese alguma. Mas o que o entrevistado falou?

– Ele disse que a decisão do STF sobre a responsabilização dos veículos de comunicação por declarações de entrevistados traz insegurança total, porque intimida e cria embaraço à atuação dos jornalistas.

– Que absurdo! Como pode um jornal publicar uma entrevista que coloca em dúvida a sabedoria do Supremo? É muita irresponsabilidade. Estas são declarações comprovadamente injuriosas contra a lisura do Poder Judiciário. A publicação desta entrevista representa uma ameaça à democracia. Portanto, o jornal pode ser responsabilizado. O dono desse jornal enlouqueceu?

– Pois é.

– O que mais o entrevistado disse?

– Ele disse que não queria estar na pele da imprensa.

– É estarrecedor. Parece que ele está insinuando que existe censura neste país. Isso é muito grave. Na minha cabeça, subjetivamente, isso já basta para caracterizar a entrevista como imputação de falsa prática de crime por parte do Supremo, já que a Constituição não admite censura.

– Sim, meritíssimo, este jornal deveria ter observado o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos. Jamais poderia ter publicado uma entrevista dessas. E um dia depois da decisão do STF!

– Parece provocação. Tem mais alguma coisa?

– Sim, meritíssimo. Fazendo uma pesquisa aqui no Google, olha só o que eu achei! O entrevistado já escreveu o seguinte: “O Estado torna-se mais democrático quando não expõe esse tipo de trabalho à censura oficial, mas, ao contrário, deixa a cargo da sociedade fazer a análise, formando as próprias conclusões.”

– Jovem, a democracia continua mesmo em risco. Cabe ao Supremo proteger a sociedade desta ameaça.

– Sim, meritíssimo. Derrotamos o inimigo, mas os ataques às bases do Estado Democrático de Direito não param. A luta pela democracia precisa ser incessante.

– Onde é que nós vamos parar? Daqui a pouco vão entrevistar alguém que questiona a agenda climática. Ou, pior ainda, vão entrevistar alguém que defende o voto impresso porque não confia na inviolabilidade das urnas eletrônicas. Precisamos punir esse jornal de forma exemplar. Talvez até bloquear preventivamente suas contas bancárias e seus perfis nas redes sociais, para que não volte a espalhar mentiras terroristas.

– É só dar uma canetada democraticamente monocrática, meritíssimo!

– Farei isso. Mas quem foi o irresponsável que deu essas declarações?

– Deixa eu ver aqui. Foi o ex-ministro do STF, Marco Aurélio Mello, em uma entrevista publicada pelo “Estadão”.

O diálogo acima é imaginário, é claro. Mas as declarações são verdadeiras. Mello comentava a decisão do STF que valida a responsabilização dos veículos de imprensa por declarações de entrevistados entendidas como caluniosas, com base em “indícios concretos”. O trecho sobre a censura oficial está no seu voto como relator do caso em questão, antes de se aposentar.

Trata-se, evidentemente, de uma sátira. Mas, por melhores que sejam as intenções (pressupondo que as intenções sejam boas), o fato é que a tese aprovada pelo STF cria a jurisprudência e a ferramenta jurídica para que a ficção se torne realidade.

Quantas entrevistas que denunciam escândalos deixarão de ser publicadas no futuro, por instinto de sobrevivência dos jornais e jornalistas?

No dia 13 de dezembro de 1968 foi realizada a reunião em que o presidente Costa e Silva assinou o Ato Institucional Número 5, que consolidaria a ditadura militar no Brasil. Como se sabe, o AI-5 admitia a censura aos veículos de comunicação, a cassação de mandatos políticos, a suspensão de direitos civis e a adoção de medidas de exceção, tudo isso sem qualquer consulta aos representantes eleitos do povo.

O então vice-presidente Pedro Aleixo se manifestou contra. Um puxa-saco perguntou se Aleixo duvidava “das mãos honradas do presidente”, a quem, afinal de contas, caberia a decisão final sobre o AI-5.

Aleixo respondeu: “Das mãos honradas do presidente Costa e Silva, jamais. Desconfio é do guarda da esquina”.

Traduzindo: o perigo não estava no discernimento do presidente, mas no efeito-cascata que a medida teria em toda uma escala de autoridades, que ia do Planalto ao guarda que descia o cassetete em quem era então percebido pelo poder como inimigo.

Hoje, mais uma vez, o problema não está nas “mãos honradas” de quem manda. O problema é que a tese da responsabilização dos veículos de comunicação por falas de entrevistados coloca o cassetete nas mãos dos guardas de esquina.

Como declarou o advogado João Carlos Velloso, a responsabilização cria o risco de "assédio processual" contra a imprensa, ou seja, “o ajuizamento sistemático de ações com o objetivo de intimidar jornalistas e veículos”.

As consequências práticas dessa potencial multiplicação de processos são óbvias: autocensura e relativização da liberdade de expressão. Só estará livre deste risco que não ousar publicar entrevistas que desagradem a alguém.

Não é só isso. Nos últimos 30 anos, muitos dos maiores escândalos de corrupção do Brasil (senão todos) foram revelados em entrevistas de pessoas que tiveram a coragem de denunciar os esquemas, publicadas por jornais que tiveram a disposição de divulgá-las.

Porque, como disse George Orwell, jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique: o resto é publicidade; ou, como disse Millôr Fernandes, jornalismo é oposição: o resto é armazém de secos e molhados.

Aos olhos do poder, do guarda da esquina ao Planalto, em rigorosamente todas aquelas entrevistas que denunciaram escândalos seria possível identificar indícios concretos de imputação caluniosa de crimes, porque estes só seriam comprovados bem mais tarde. E, no momento da publicação, os jornais não tinham como verificar a veracidade das denúncias.

Por conta da tese ora aprovada, quantas entrevistas assim deixarão de ser publicadas no futuro, por instinto de sobrevivência dos jornais e jornalistas?

Informo ao leitor mais ingênuo que, antes mesmo da aprovação desta tese pelo STF, já existem assuntos sobre os quais só é possível escrever medindo com muita cautela as palavras – e, mesmo assim, o texto precisa passar pelo departamento jurídico do jornal.

Porque, aparentemente, não faltam juízes de primeira instância dispostos a condenar uma empresa de comunicação pelo emprego errado do pronome neutro, para citar apenas um exemplo. Imagine agora.

Talvez isso não aconteça – ainda – na grande mídia, que em muitos casos optou por se tornar assessoria de comunicação dos donos do poder e porta-voz de uma agenda ideológica.

Mas em breve também a grande mídia obsequiosa sofrerá na pele as consequências de suas escolhas. A exemplo do ministro Marco Aurélio Mello, ninguém vai querer estar na pele da imprensa.

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