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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Geolacração

O mundo de pernas para o ar

De acordo com o presidente do IBGE, Marcio Pochmann, a novidade tem como objetivo “ressaltar a posição atual de liderança do Brasil”. (Foto: Divulgação/IBGE)

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Chupa, Europa, por essa você não esperava! O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – lançou um novo mapa-múndi, com o Brasil no centro e o hemisfério sul no alto. Finalmente está sendo feita a justiça geográfica. Agora vai!

Depois de milênios de colonialismo cartográfico, o mapa invertido reescreve a narrativa eurocêntrica, adotando uma perspectiva anti-imperialista cada vez mais necessária na nova ordem geopolítica mundial!

O Brasil no centro desafia a histórica marginalização do país, enquanto o hemisfério sul no topo subverte a hierarquia imposta pelas potências do norte, historicamente responsáveis pelas veias abertas da América Latina!

Esse mapa precisa ser adotado imediatamente em todas as escolas públicas e particulares do país! É uma ferramenta pedagógica fundamental para que nossas crianças e jovens se enxerguem, orgulhosamente, como protagonistas, e não mais como coadjuvantes relegados à periferia do globo terrestre! Já dá até para imaginar o próximo ENEM, com questões começando assim: “Considerando o novo paradigma sul-cêntrico...”

A notícia me fez lembrar outra iniciativa maravilhosa, esta na Bolívia de Evo Morales. Em junho de 2014, quando era presidente, Morales decidiu inverter a numeração e o movimento dos ponteiros do relógio do edifício do Congresso, em La Paz – que passaram a girar no sentido anti-horário.

Ao descolonizar o tempo, Evo rompeu com mais uma herança cruel do imperialismo, afirmando uma cosmovisão alternativa e andina.

Tanto o mapa invertido quanto o relógio que anda em marcha à ré são dois marcos históricos, duas propostas radicais de reorientação literal e metafórica do tempo e do espaço. Não é pouco.

São verdadeiros atos de resistência, que afirmam o protagonismo do sul global. São provas de que, invertendo o tempo e o espaço, nós podemos – e devemos – contar a nossa própria História!

Agora falando sério.

Na época do excêntrico relógio invertido, a Bolívia enfrentava graves problemas: miséria, corrupção endêmica, desigualdade persistente, violência urbana, tráfico de drogas, instabilidade institucional. Mudar a direção dos ponteiros do relógio, nesse cenário catastrófico, foi apenas um gesto simbólico de marketing ideológico, sem qualquer efeito prático na vida das pessoas.

Em ano de eleição, Evo Morales precisava de manchetes para reforçar sua imagem de líder anti-imperialista, enquanto a Bolívia real afundava no caos. Ele conseguiu ser reeleito, mas o povo não caiu no truque do relógio: a promessa de estender a medida aos relógios de todos os edifícios públicos acabou morrendo no ridículo.

Felizmente, o tempo continuou andando para frente: hoje, o líder boliviano é um foragido da justiça, com diversos mandados de prisão em aberto, inclusive por abuso de menores.

O mapa invertido é um placebo cultural, que gera zunzunzum nas redes, mas deixa o país exatamente na mesma

A fracassada revolução temporal de Morales não trouxe nenhum benefício concreto para os bolivianos. Os indígenas, que ele dizia representar, continuaram marginalizados em seu próprio país. E o relógio não desafiou o colonialismo coisa nenhuma: apenas mascarou a falência de um governo que estava mais preocupado com propaganda do que com resultados.

O ato de resistência estética só serviu para alimentar uma narrativa de soberania e independência cultural, mas teve utilidade prática nula. Pior: gerou muita confusão entre bolivianos, que não sabiam mais como responder a uma pergunta simples: que horas são?

A revolução cartográfica de hoje não é muito diferente. Na América Latina, onde crises econômicas, corrupção e desigualdade solapam periodicamente a estabilidade dos governos, líderes costumam recorrer a gestos simbólicos para desviar o olhar da bagunça.

Esperemos que seja apenas um gesto simbólico. Em todo caso, vendido como ato de descolonização, o mapa invertido, como o relógio que anda para trás, corre o risco de ser percebido apenas como mais uma manobra populista para distrair os tolos dos verdadeiros problemas do país.

Esse fenômeno pode ser resumido em duas palavras: lacração geográfica (ou geolacração). Enquanto o desmatamento na Amazônia bate recordes – em meio a um silêncio ensurdecedor dos artistas, para surpresa de ninguém – o mapa invertido oferece uma falsa sensação de empoderamento.

Pode-se até argumentar que a crítica ao eurocentrismo embutida no mapa é legítima. Todo mapa é uma construção social, e a forma como o mapa-múndi se consolidou ao longo dos séculos, com o norte no alto e o Oceano Atlântico no centro, é um legado da era dos descobrimentos e da influência da cartografia europeia. O mundo poderia ser representado de outra maneira, isso é óbvio. Até aí tudo bem.

Mas a dura realidade é que redesenhar o mapa não altera em nada as relações comerciais desiguais entre o sul e o norte, nem a dependência tecnológica, nem os déficits educacionais e civilizacionais do Brasil e da América Latina. A ilusão de protagonismo geográfico pode até massagear o ego nacionalista de alguns intelectuais progressistas, mas não vai melhorar a sua vida em nada.

Mudar a representação do mundo em um pedaço de papel não muda a situação periférica do Brasil no cenário global, nem freia a devastação ambiental, nem diminui a desigualdade, nem combate a inflação e a violência que afligem o brasileiro comum. O mapa invertido é um placebo cultural, que gera zunzunzum nas redes, mas deixa o país exatamente na mesma.

Do relógio ao mapa, é possível identificar um padrão nesses gestos simbólicos: são baratos, chamativos e fáceis de vender como “resistência cultural”. São símbolos, não são soluções. Priorizam a estética, não os resultados.

Não exigem reformas complexas, nem o enfrentamento de interesses consolidados. São ideologicamente convenientes para governos que querem reforçar sua base - e precisam desviar o foco da má gestão ou do autoritarismo crescente. São formas de dizer “Estamos mudando tudo”, quando, na prática, muito pouco está sendo feito.

O relógio e o mapa compartilham o mesmo DNA e são espelhos de uma mesma ilusão: a ideia de que gestos simbólicos podem substituir ações concretas. Na Bolívia, o relógio não melhorou a vida de ninguém; no Brasil, o mapa não irá salvar uma árvore sequer na Amazônia.

Enquanto líderes e ativistas brincam de inverter tempo e espaço, os problemas reais seguem intocados, e a população, confusa, paga o preço da propaganda. Ironicamente, o mapa de pernas para o ar e o relógio anti-horário não deixam de ser metáforas adequadas para países que parecem perdidos, tristemente condenados à desorientação e ao atraso.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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