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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Casamento desfeito

Quando aliados viram inimigos

Trump disse estar "muito decepcionado" com o empresário; Musk afirma que republicano não teria vencido a eleição sem seu apoio. (Foto: Luciano Trigo com ChatGPT)

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Ainda é cedo para cravar quais serão os desdobramentos da escalada da briga entre Donald Trump e Elon Musk. Provavelmente, não serão bons para nenhum dos dois. Se mesmo em casamentos a lavagem pública de roupa suja nunca termina bem, rupturas de presidentes poderosos com aliados estratégicos podem ter um impacto devastador, especialmente quando os aliados saem do governo atirando.

Mas, paradoxalmente, também podem acabar fortalecendo a imagem pública de um dos envolvidos. No jogo político, a verdade dos fatos pode ser menos relevante que as narrativas. O campo de batalha simbólico é tão importante quanto o campo de batalha real. Rompeu-se, de qualquer forma, a imagem de coesão.

Já há algum tempo o relacionamento entre Donald Trump e Elon Musk vinha dando sinais de azedar, por conflitos de interesses inconciliáveis. Na semana passada, Musk acabou deixando o governo por discordar da política orçamentária, considerada intervencionista e contrária aos princípios de eficiência que ele defende.

E ontem, depois de uma prolongada troca de farpas, o dono do X usou sua rede social para soltar uma bomba: o presidente americano teria sido citado nos arquivos do caso Jeffrey Epstein, um escândalo que envolve uma rede de exploração sexual de menores. Pelo menos por enquanto, trata-se de uma alegação vaga. Trump foi citado como? Em que contexto?

Em todo caso, é importante lembrar que, durante anos, enquanto os citados no escândalo eram Bill Clinton, artistas de Hollywood e astros da música, os virtuosos democratas fizeram cara de paisagem. Agora, para surpresa de ninguém, se dizem escandalizados. É hipocrisia que fala?.

Aliado crucial de Trump durante a campanha eleitoral de 2024, Musk usou sua fortuna, sua influência e sua plataforma para apoiar o republicano. Sua saída turbulenta do governo deve representar uma reconfiguração simbólica maior do que uma simples retirada de apoio.

A base de Trump, como a de Bolsonaro, é marcada pela lealdade incondicional ao líder e tende a rejeitar dissidências como atos de deslealdade

Guardadas as diferenças, o episódio espelha a ruidosa saída do hoje senador Sergio Moro do governo Bolsonaro, em abril de 2020. Os dois relacionamentos seguem um arco semelhante. Como um “desertor ilustre”, Moro representou para o governo Bolsonaro o que Musk pode representar para o governo Trump.

Nomeado Ministro da Justiça e Segurança Pública logo no início do governo, com a promessa de ter carta-branca para fortalecer a agenda anticorrupção, Moro era extremamente popular mesmo fora da bolha bolsonarista. Sua indicação funcionou como uma carta de apresentação ética de um governo que prometia romper com os vícios do sistema político. Como uma espécie de consciência moral no centro do poder, Moro reforçaria a popularidade de Bolsonaro e se tornaria ele próprio ainda mais popular - se tudo desse certo.

Por tudo isso, quando ele acusou o presidente de interferência política na Polícia Federal, pareceu que isso representaria uma rachadura irreversível na imagem do governo. Abandonado por Moro, Bolsonaro perderia o lastro ético-institucional que o identificava a uma promessa de renovação moral da política. Talvez fosse esta a expectativa, e um desdobramento possível seria a pavimentação de uma candidatura de Moro à presidência.

Mas não foi isso que aconteceu. O que começou com a promessa de uma grave crise institucional acabou como um inquérito arquivado, por falta de provas conclusivas. Também ganhou tração a tese de que Moro queria uma vaga no STF e, não tendo sido atendido, teria agido por ressentimento, o que gerou desgaste (mas devo dizer aqui que o Supremo estaria melhor com Moro do que com... Deixa para lá).

Uma análise psicológica diria que a base de Donald Trump, como a de Bolsonaro, é marcada pela lealdade incondicional ao líder e tende a rejeitar qualquer dissidência como atos de deslealdade. Quando um aliado rompe, ele comete uma heresia, como um apóstolo que nega o messias (sem trocadilho).

Por outro lado, tanto Moro quanto Musk podem ter sofrido uma fratura cognitiva entre idealismo e realismo político: incapazes de operar com a ambiguidade e os compromissos da política, preferiram sair.

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Musk tem o poder de moldar a percepção pública que Moro, evidentemente, não tinha. Isso já bastaria para desorganizar o ecossistema trumpista

Mas o que importa perguntar aqui é: quem saiu mais prejudicado do episódio? Bolsonaro ou Moro?

Sem fazer juízo de valor, parece claro que o saldo foi pior para o herói da Operação Lava-Jato e símbolo internacional do combate à corrupção. Se ele já era (compreensivelmente) odiado pela esquerda lulopetista, sua percebida deslealdade política provocou a rejeição de parte do centro e da direita. Para muitos, Moro passou a ser visto como um traidor, alguém que abandonou o barco em um momento crítico – os primeiros meses da pandemia.

Ou seja, ele passou a ser criticado por todos os lados. Por sua vez, Bolsonaro conseguiu manter sua base fiel, tanto entre o seu eleitorado quanto no Congresso Nacional. O desgaste provocado pela saída de Moro, a vitrine ética de seu governo, não durou muito. Mas Moro também conseguiu se reposicionar, sendo eleito senador. Mais tarde, fez as pazes com Bolsonaro, subindo em seu palanque na campanha de 2022. Talvez o mesmo aconteça com Musk. Talvez.

Pelo poder que acumula como homem mais rico do mundo, figura global e dono de empresas como a Tesla e SpaceX (além do X, que amplifica o impacto de qualquer declaração sua).

Musk detém um poder de moldar a percepção pública que Moro, evidentemente, não tinha. Isso já bastaria para desorganizar o ecossistema trumpista: Musk pode convencer parte do eleitorado republicano a se afastar do presidente e apoiar uma candidatura alternativa ao trumpismo, em 2028. A tensão pode beneficiar terceiros.

Ambos os casos mostram que, na política, sobretudo em governos personalistas, com lideranças carismáticas que funcionam como figuras paternas míticas, a lealdade pode importar mais do que determinar quem tem razão. Quem ousa romper com o líder está sujeito a enfrentar não apenas um embate político, mas também o exílio simbólico.

Aos olhos da oposição democrata, a ruptura é um presente. Mas o exemplo brasileiro mostrou que sair do governo atirando não é garantia de sucesso, nem de desgaste duradouro do líder abandonado.

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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