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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Democracia relativa

Roosevelt e as quatro liberdades

As quatro liberdades de Franklin D. Roosevelt viraram exceção no Brasil: restam a censura, a dependência e um regime autoritário disfarçado de democracia. (Foto: Imagem criada utilizando Grok/Gazeta do Povo)

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No dia 6 de janeiro de 1941, Franklin D. Roosevelt fez seu discurso anual no Congresso dos Estados Unidos. O contexto era a iminente entrada dos Estados Unidos, oficialmente ainda neutros, na Segunda Guerra, necessária para defender o mundo livre do avanço do nazi-fascismo na Europa e na Ásia.

Até hoje aquele discurso é lembrado como um marco na defesa dos direitos humanos e da democracia. Em um momento decisivo da História, Roosevelt sintetizou as quatro liberdades fundamentais que deveriam ser garantidas a todos os povos do mundo, na ordem global do pós-guerra. Nas palavras do presidente americano, tais liberdades eram as seguintes:

“A primeira é a liberdade de palavra e expressão – em qualquer lugar do mundo.”

O direito de todos expressarem suas opiniões livremente, sem medo de repressão ou censura, é a base da democracia e da participação política. Para Roosevelt, essa liberdade não deveria ser um privilégio americano, mas um direito universal e um valor a ser defendido contra regimes totalitários.

“A segunda é a liberdade de cada pessoa adorar a Deus à sua maneira – em qualquer lugar do mundo.”

A liberdade de culto inclui o direito de praticar qualquer religião (ou nenhuma), sem ser perseguido por isso. Roosevelt afirma que nenhum governo tem o direito de interferir na fé individual, fazendo um apelo contra as perseguições religiosas que ocorriam na Europa e defendendo o pluralismo religioso como valor universal.

“A terceira é a liberdade contra a necessidade – que, traduzida em termos mundiais, significa acordos econômicos que garantam a cada nação uma vida saudável para seus habitantes, em tempos de paz.

É o direito a uma vida com segurança econômica, incluindo acesso a comida, moradia e trabalho. Mas Roosevelt não via a pobreza como uma questão social, mas como um obstáculo à liberdade. Ele defendia políticas que garantissem segurança econômica mínima, permitindo que todos pudessem viver com dignidade, livres da miséria e da fome - mas livres também para empreender e prosperar sem depender do Estado.

“A quarta é a liberdade contra o medo – que, traduzida em termos mundiais, significa uma redução generalizada de armamentos a tal ponto e de forma tão completa que nenhuma nação possa cometer um ato de agressão física contra outra”.

Embora o contexto imediato da citação seja a guerra, essa liberdade também pode ser entendida como o direito de viver sem medo da opressão estatal, da violência ou da coerção política. Em suma, Roosevelt sonhava com um mundo onde as pessoas não fossem governadas pelo medo — seja de tiranos, da miséria ou da repressão.

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Uma análise honesta da realidade brasileira mostra que, na prática, essas liberdades são relativizadas, ignoradas ou apenas seletivamente aplicadas

Saltemos para o Brasil de 2025. Aqui vigora uma das Constituições mais extensas e completas do mundo no que diz respeito à defesa dos direitos fundamentais, como o direito à liberdade de expressão, ao devido processo legal, à ampla defesa, à liberdade de associação e de pensamento etc.

Mas uma análise honesta da realidade brasileira atual mostra que, na prática, essas liberdades foram relativizadas, ignoradas ou aplicadas apenas de forma seletiva. O que resta é uma fachada institucional: as garantias existem no papel, mas são frequentemente violadas com a conivência – ou o protagonismo – de quem deveria defendê-las. O resultado é um Estado cada vez mais autoritário, democrático na aparência mas de espírito censório.

A liberdade de expressão, prevista no artigo 5º da Constituição, virou letra morta. A censura, que na ditadura militar se exercia de forma oficial, agora ocorre por meio de decisões monocráticas, inquéritos sigilosos e medidas cautelares sem contraditório, sempre em nome da defesa da democracia.

O que se observa é um regime de censura seletiva, onde só é livre a opinião que coincide com a visão dominante. Críticas ao Supremo, ao governo ou a certas pautas ideológicas são tratadas como crimes de ódio ou atos antidemocráticos.

A autocensura virou a norma. Milhões de brasileiros, incluindo jornalistas, cidadãos comuns e parlamentares, já aprenderam que falar pode custar caro. Isso não é liberdade de expressão — é opressão sob verniz jurídico.

Por sua vez, a liberdade religiosa só é tolerada quando não incomoda o regime. Ela também está assegurada formalmente, mas a realidade mostra um padrão discriminatório crescente, especialmente contra grupos religiosos que defendem valores conservadores ou que ousam se posicionar politicamente.

Lideranças evangélicas e católicas que expressam opiniões contrárias ao aborto ou a ideologias, ou que demonstram apoio a políticos de direita, enfrentam perseguições, investigações e até ameaças judiciais. Já as expressões religiosas alinhadas à esquerda são não apenas toleradas, mas celebradas.

Missas com tom político, cultos progressistas e rituais vinculados a movimentos identitários são protegidos, mesmo quando se confundem com campanhas eleitorais.

Além disso, profanações explícitas – como simulações sexuais ou crucifixos pisoteados em nome da arte – são toleradas em nome da “liberdade artística”, enquanto a fé cristã é cada vez mais associada ao fanatismo.

Enquanto isso, a liberdade contra a necessidade, aquela segurança econômica mínima para que nenhum ser humano morra de fome nem viva na miséria, foi sequestrada e transformada em instrumento de controle social.

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Em vez de promover autonomia e mobilidade social, o Estado brasileiro amplia o assistencialismo como política de dependência. Programas de transferência de renda, que deveriam ser transitórios, tornaram-se políticas permanentes, quase hereditárias, sem qualquer incentivo à emancipação do cidadão.

A pobreza virou capital político. Milhões de brasileiros vivem presos à necessidade, sem trabalho formal, dependendo de auxílios que os mantêm vivos, mas submissos. Em vez de promover a prosperidade e a liberdade, o Estado alimenta o medo da escassez para consolidar seu poder. Essa não é a liberdade contra a necessidade que Roosevelt sonhou — é sua negação sistemática, em nome de um projeto de poder perpetuado pela miséria.

A quarta liberdade proposta por Roosevelt, a liberdade contra o medo – o direito de viver sem medo de repressão, de violência ou de perseguição por parte do Estado – é a mais escancaradamente violada em nosso país. Hoje, o cidadão comum vive com medo de se expressar nas redes sociais, de participar de uma manifestação, de fazer uma piada, de criticar publicamente o governo ou o Judiciário.

O medo se espalha nas redações, nas universidades, nas igrejas, nos grupos de WhatsApp. Criou-se um ambiente de vigilância orwelliana, onde tudo pode ser interpretado como “crime de opinião”. O medo foi transformado em instrumento de obediência e conformidade.

Mas um país onde o cidadão teme o Estado já deixou de ser uma democracia há muito tempo. Eleições são realizadas, instituições funcionam, os poderes estão constituídos. Mas a essência do regime democrático – o pluralismo, a liberdade e a segurança jurídica – foi subvertida.

Quando o cidadão comum tem medo de falar, escrever, se associar ou questionar, não há liberdade. Quando jornalistas são censurados, presos preventivamente ou exilados por opiniões, não há liberdade de imprensa. Quando juízes se tornam partes interessadas e decidem com base em narrativas políticas, não há Estado de direito.

Na prática, as quatro liberdades fundamentais de Roosevelt estão condicionadas à submissão ideológica. A liberdade de expressão virou concessão. A liberdade religiosa é tolerada apenas se for neutra ou progressista.

A liberdade contra a necessidade foi substituída por uma política de dependência permanente. E a liberdade contra o medo deu lugar a um estado de pânico institucionalizado, em que o cidadão comum se vê como inimigo em potencial do regime.

O discurso de Roosevelt foi um chamado à construção de um mundo mais justo, livre e digno. Hoje o Brasil responde a esse chamado com silêncio, censura, dependência e vigilância. Enquanto essas liberdades não forem restauradas, o Brasil continuará sendo uma democracia apenas no nome.

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