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Luciano Trigo

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Democracia relativa

Série “O Leopardo” diz muito sobre o Brasil de hoje

A atriz Deva Cassel em uma cena da série "O Leopardo": mudar para que tudo continue igual. (Foto: Divulgação/Netflix)

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Lançada recentemente na Netflix, a série “O Leopardo” é uma belíssima adaptação do clássico romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Ambientada na Sicília da década de 1860, durante o processo de unificação da Itália, a trama gira em torno de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, que vê seu estilo de vida aristocrático ser ameaçado pelas forças revolucionárias emergentes, comandadas por Garibaldi.

O livro já tinha sido adaptado para o cinema por Luchino Visconti, em 1963. Com orçamento de 40 milhões de euros, a nova série se destaca pela opulência visual e pela maneira como moderniza o romance, ao dar maior protagonismo às personagens femininas.

Para proteger sua família, Don Fabrizio orquestra um casamento estratégico entre seu sobrinho Tancredi e a bela Angelica, filha de um burguês enriquecido, sacrificando os sentimentos de sua filha Concetta.

Don Fabrizio percebe que a revolução não representa necessariamente uma ruptura total, mas uma oportunidade para as elites se reinventarem, por meio da fusão simbólica entre a nobreza decadente e a nova burguesia republicana. Por sua vez, seu sobrinho Tancredi, um oportunista galante, junta-se aos garibaldinos não por idealismo, mas para ascender socialmente.

Com melancolia e pragmatismo frente às mudanças inevitáveis, Tancredi observa:  "Se vogliamo che tutto rimanga com'è, bisogna che tutto cambi" (“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”). Essa máxima resume o tema central do romance e da série: em momentos de crise, as elites adaptam-se superficialmente para preservar seus privilégios, permitindo alterações cosméticas, mas mantendo intacto o cerne do poder.

A aristocracia siciliana não resiste com violência; prefere negociar, integrar os emergentes e domesticar a mudança. O príncipe reconhece que a velha ordem deve ceder espaço a novos atores – mas apenas na medida em que estes aceitarem regras que salvaguardem as vantagens dos antigos.

A mudança, assim, se ritualiza: há novos nomes nas festas, nova decoração nos salões; mas os corredores de influência continuam os mesmos. As classes dominantes sempre conseguem absorver e neutralizar a mudança. Tancredi torna-se senador, para manter o poder das elites e a manipulação dos pobres.

Descendente de nobres sicilianos, Lampedusa escreveu o livro "O Leopardo" no final da década de 1950. Ele criticava tanto o fascismo quanto o comunismo, enfatizando como as elites sempre conseguem sobreviver. Esta é uma lente perfeita para analisar o Brasil, onde o sistema – o establishment político-econômico – resiste a reformas profundas, preferindo ajustes que preservem os seus privilégios.

Em um país marcado pela corrupção endêmica, por desigualdades sociais profundas, por indicadores econômicos pífios e pela crescente polarização política, a única preocupação das elites econômicas, judiciais, midiáticas e políticas é manter o status quo. Arremedos de reformas e barganhas indecorosas blindam privilégios, enquanto se perpetuam a dependência do Estado e a imobilidade social entre os mais pobres.

Em público, os políticos que afirmam defender o povo são tigrões; nos bastidores, são tchuthucas a serviço de interesses internacionais e do grande capital globalizado.

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É nesse contexto que precisam ser entendidas a perseguição implacável, a inelegibilidade absurda e, finalmente, a prisão arbitrária de Jair Bolsonaro.

O mesmo sistema que, em um passado recente, expeliu, prendeu, soltou e, finalmente reabilitou Lula e o levou de volta ao Planalto se empenha, desde as eleições de 2022, em transformar o “Bozo” em um cadáver político - para que as coisas continuem como estão. Como na Itália da época da Unificação, as pessoas comuns podem se lascar; o que importa para as elites é não perder o controle do processo.

O resultado? Um país refém de barganhas, com a população reduzida à apatia e ao medo. Nesse cenário, eventos como a inelegibilidade de Bolsonaro e a fracassada terceira via ilustram perfeitamente o mecanismo lampedusiano, que se manifesta em duas frentes: a perseguição e exclusão de figuras disruptivas e as tentativas de costurar consensos em torno de alternativas moderadas e controláveis.

Como parte do sistema, o Judiciário age como o Príncipe de Salina. Ao promover a exclusão do processo eleitoral de uma figura ameaçadora, com base em uma narrativa de defesa das instituições e da democracia, evita-se alterar as raízes da corrupção e da desigualdade no país. Assim, tudo muda (o candidato indesejado fica fora das urnas), mas tudo continua igual (os privilégios seguem intactos).

No fundo, a elite política e empresarial brasileira não acredita na transformação do país, apenas na reprodução dos fluxos de poder. Quando um presidente cai, outro assume, e os conchavos seguem. Quando a esquerda promete "refundar a república", o Centrão já está de braços abertos, pronto para ser "refundado" também com as empreiteiras já esperando na antessala.

A elite, em sua composição patrimonialista e oligárquica, é a verdadeira protagonista da peça. A encenação da preocupação com o povo mal consegue esconder as negociações entre caciques partidários, os encontros a portas fechadas com empresários e os apelos ao Judiciário para preservar condições básicas de governabilidade.

Excluídos os nomes que representam uma ameaça, o jogo se reduz aos mesmos atores reciclados de sempre. Elegemos "novos" nomes, que vêm das mesmas famílias, formados nas mesmas escolas, financiados pelas mesmas elites. Tal qual o Príncipe de Salina, o sistema promove mudanças para que nada mude de fato.

Mas se enganam os eleitores da esquerda que comemoram o interminável calvário de seu inimigo: sem Bolsonaro na corrida, Lula deixará de ser útil e necessário. Parece cada dia mais claro que a aposta dos donos do poder em 2026 será forjar um consenso em torno da "terceira via", com o apoio da grande mídia e do Poder Judiciário.

Este, por sua vez, também será enquadrado, à medida que seus excessos deixarem de ser aplaudidos e começarem a ser problematizados. Já está acontecendo. E os mesmos que, ao longo dos últimos anos, trataram um ministro do STF como herói não hesitarão em atirá-lo às feras, no momento propício - fazendo cara de paisagem, ainda por cima.

Por tudo isso, “O Leopardo” é mais que uma adaptação suntuosa de um clássico da literatura; é um ensaio perturbador sobre o poder e a ilusão da mudança. Assistir à série no Brasil de hoje é como olhar para o espelho e ver refletida a nossa alma. A alma de um país onde as elites nunca perdem poder, onde a revolução é uma performance, e onde os vencedores da nova ordem são sempre parentes dos derrotados da velha.

 

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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