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“Vênus ao espelho”, de Diego Velázquez (1647): hoje, o quadro seria cancelado
“Vênus ao espelho”, de Diego Velázquez (1647): hoje, o quadro seria cancelado| Foto: Reprodução

Antes de concluir, conforme prometido, meu artigo sobre o cancelamento da estátua italiana acusada de sexismo, quero destacar o comentário de um leitor:

“Não sei se Freud explica. A sensualidade da estátua é censurada, mas as divas progressistas do pop são ‘empoderadas’ quando balançam a raba diante das câmeras.”

Mas não é? Comparada a qualquer videoclipe da Anitta e outras cantoras da moda, a escultura condenada por “sexualizar” o corpo feminino se torna um monumento ao pudor. Aliás, basta dar um passeio pelo Instagram para se deparar com uma avalanche de fotos de corpos femininos “sexualizados”, que não provocam qualquer escândalo.

Ao contrário, famosas e anônimas parecem se sentir empoderadas ao compartilhar fotos “sensualizando” (aliás, às vezes acompanhadas de versículos da Bíblia, vai entender...), ou vídeos dançando ao som de funks proibidões – com letras grotescas que, estas sim, reduzem as mulheres a objetos, sem que nenhuma feminista reclame (de novo: vai entender...).

A conclusão necessária é que estamos mesmo vivendo a era do moralismo hipócrita e da indignação seletiva. Mas, voltando ao episódio de Sapri:

Os tribunais da Internet

Antes que existissem as redes sociais, muito provavelmente o episódio da escultura "La Spigolatrice di Sapri" ficaria restrito ao debate local, sem ultrapassar as fronteiras de um vilarejo com menos de 10.000 habitantes no sul da Itália. Mereceria, no máximo, uma notinha irônica em um jornal da capital.

Mas a Internet provocou o fenômeno do empoderamento dos pequenos rebanhos – e o mundo ainda não aprendeu a lidar com isso. De forma que qualquer bobagem que, no mundo pré-internet, teria uma repercussão proporcional à sua irrelevância pode ser amplificada a ponto de provocar um debate internacional. É claro que isso pode ser usado de forma perversa e mal intencionada.

Pequenos grupos descobriram que a visibilidade instantânea proporcionada pelas redes sociais pode ser uma ferramenta muito eficaz de imposição de opiniões próprias arbitrárias e de perseguição e julgamentos sumários de adversários políticos ou desafetos pessoais.

Esses grupos rapidamente se mobilizam em tribunais sumários, que julgam, condenam e esfolam o desafeto da vez com uma voracidade nunca vista. É o efeito de matilha, que explica a onda de linchamentos virtuais e a cultura do cancelamento que se disseminou nos últimos anos, no Brasil e no mundo.

Muita gente embarca nessa onda de boa-fé, mas muita gente também age movida, simplesmente, pelo ressentimento e pela inveja, sentimentos que nunca devem ser subestimados na dinâmica das interações sociais.

No caso em tela, o artista Emanuele Stifano – que teve a ousadia de transgredir a nova ordem do moralismo progressista – já foi devidamente cancelado e rotulado como o machista escroto hetero-nazista que humilha as mulheres e apoia a cultura do estupro. De nada adiantou o artista se defender afirmando que pretendia representar um “ideal de mulher”. Aliás, isso só piorou as coisas, porque o ideal de mulher a que ele se refere hoje se tornou inaceitável.

A redução da realidade a clichês

É o que acontece quando a realidade é reduzida a clichês e palavras de ordem: todas as sutilezas e complexidades de qualquer assunto se perdem, e as pessoas se calam porque sentem medo de discordar do discurso raivoso da galera que se julga “do bem”.

Em uma sociedade na qual todas as pessoas são automaticamente classificadas como aliadas ou inimigas, qualquer besteira serve como pretexto para o exercício da patrulha e da exibição de falsa virtude.

A escultura foi atacada por representar a mulher com um “corpo sexualizado – como se toda a História da Arte não estivesse repleta de representações sexualizadas de homens e mulheres. Vamos então cancelar todos as obras da Antiguidade grega, do Renascimento e do Modernismo que representam o corpo feminino como belo e sensual?

Vamos jogar Picasso e Matisse na fogueira da Inquisição politicamente correta? Vamos, enfim, proibir a representação artística do belo, já que a beleza passou a ofender? Melhor mandar fechar logo todos os museus, para que quadros indecentes e ofensivos como a "Vênus ao espelho”, de Velázquez, que retrata uma mulher magra, bonita e sensual (que horror!), não ofendam mais a sensibilidade progressista.

Aliás, as praias também estão cheias de corpos sexualizados: vamos então proibir as mulheres de usar biquíni e tornar obrigatório o uso da burca?

Não ria, leitor, esse processo já está em curso: as praias do litoral da França e do Reino Unido já estão cheias de mulheres usando “burquíni” (uma combinação de burca com biquini); e, nas Olimpíadas de Tóquio as jogadoras de handebol de praia da Noruega se recusaram a usar biquini nas competições, em uma crítica à sexualização das mulheres.

Pessoalmente, acho tudo isso absurdo, mas se for a vontade da maioria, o que fazer? Mas esta será mesmo a vontade da maioria?

Representatividade e ditadura da minoria

Como medir a representatividade dos grupos que defendem medidas como a supressão dos biquínis em esportes de praia ou a censura a obras de arte politicamente incorretas?

A democracia consagrou a vontade da maioria como critério e bússola para o convívio em sociedade. Nas eleições, evidentemente, são os candidatos com mais votos que têm suas propostas legitimadas – e, em países normais, os derrotados lidam bem com isso.

Também evidentemente, a democracia criou regras e instituições para proteger os direitos das minorias da vontade arbitrária e do poder absoluto da maioria: são os famosos freios e contrapesos, que impedem que a democracia se converta em ditadura da maioria sobre a minoria.

Mas como quantificar a relevância, em termos estatísticos, dos grupos que defendem causas específicas, geralmente ligadas a bandeiras identitárias – por exemplo, o direto de "mulheres trans" usarem o banheiro feminino, ou de homens biológicos competirem em equipes femininas? Difícil. No entanto, esses “direitos” são tratados como auto-evidentes, como se fossem apoiados e defendidos pela maioria da população. Não são.

O que vem acontecendo é o contrário: minorias organizadas e barulhentas se acham no direito de impor vontades arbitrárias sobre a maioria. É o caso, por exemplo, da adoção dos pronomes neutros e do ensino na ideologia de gênero nas escolas.

Com apoio de parte da mídia e do Judiciário, configura-se assim o risco de uma ditadura da minoria, que - só não enxerga quem não quer - já está exercendo diariamente o poder de censurar e mandar calar a boca; de perseguir desafetos e pedir suas cabeças; e de estabelecer, de forma moralista, o que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode pensar, falar e fazer. Inclusive na arte. Às favas a liberdade de expressão e de criação artística.

Os detratores da estátua na Itália não propõem um referendo popular ou um plebiscito – da mesma maneira que grupos progressistas no Brasil não propõem plebiscitos sobre a liberação das drogas, sobre o aborto, ou sobre a ideologia de gênero. Por quê? Porque sabem que vão perder, já que estas são bandeiras defendidas por minorias.

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