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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Guerra de narrativas

Thomas Sowell investiga o papel dos intelectuais

Sowell questiona o impacto de intelectuais cujo discurso, sem responsabilidade, influencia decisões que podem cobrar alto preço da sociedade. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Em seu livro “Intelectuais e a sociedade”, recém-lançado no Brasil, Thomas Sowell parte de uma pergunta simples, mas necessária: o que acontece quando pessoas cuja única produção é o discurso – ideias, narrativas, teorias – passam a influenciar decisões que podem cobrar um alto preço da sociedade, sem que elas respondam pelos resultados?

O autor chama de intelectuais, justamente, os profissionais cuja matéria-prima é a narrativa, não o conhecimento testado no mundo real. Não são apenas os acadêmicos, mas também formadores de opinião, líderes culturais, críticos, jornalistas e até juristas, quando atuam como produtores de narrativas.

Sowell os descreve como "ungidos", uma elite que se vê como superior e julga ter a missão de guiar os ignorantes, isto é, as pessoas comuns. Essa classe se enxerga como portadora da consciência moral da sociedade: quem discorda não está apenas errado; é mal-intencionado, reacionário, fascista etc.

Paradoxalmente, quando cresce o poder dos intelectuais, o custo do dissenso sobe, o debate se empobrece e políticas públicas mal formuladas ganham blindagem simbólica. Porque os incentivos dos intelectuais são baseados na aprovação de pares e de seu público, não na eficácia ou na viabilidade de suas ideias. E eles querem ser julgados (e aplaudidos) por suas intenções, não pelos efeitos práticos de suas teorias.

Sowell não é anti-intelectual; ele apenas faz uma defesa radical da necessidade de critérios externos de validação. Porque a experiência tem demonstrado que a elite discursiva vem se afastando cada vez mais da realidade – o que a leva a produzir, na mesma medida, certezas eloquentes e políticas desastrosas.

Segundo Sowell, isso produz três problemas:

Primeiro, a ausência de accountability, da obrigação de prestar contas: quando as ideias dos intelectuais fracassam, a culpa é de falhas na sua implementação ou da sabotagem de forças reacionárias, raramente da fraqueza de suas próprias ideias.

Segundo, o foco nas intenções e nas identidades: seus discursos são avaliados pelo suposto altruísmo e pela posição moral do emissor, e não por seus resultados práticos.

Terceiro, problemas complexos são atribuídos à ação de adversários vilões, por meio de slogans simplórios, ignorando-se totalmente o papel dos incentivos, das restrições e dos trade-offs inevitáveis em todas as interações sociais.

Intelectuais, afirma Sowell, prosperam oferecendo “soluções” retoricamente impecáveis. Mas o fato é que, para muitos problemas da sociedade, não existem “soluções”, somente escolhas difíceis. Todo objetivo de cunho social – como a redução da desigualdade, o aumento da segurança ou a proteção do meio ambiente – implica custos e tem efeitos colaterais indesejados, que os governantes gostam de ocultar.

Quando o custo efetivo não é arcado por quem decide, a má alocação dos recursos públicos se perpetua

Sowell cita como exemplo o controle do valor dos aluguéis, que reduz a oferta e piora a moradia: quando a política se concentra em punir o proprietário “ganancioso”, a consequência é a redução da oferta de imóveis. De maneira similar, quando o salário mínimo é aumentado acima da produtividade marginal do trabalhador, isso exclui do mercado de trabalho os jovens e os profissionais menos qualificados.

Outros exemplos são as políticas de desarmamento – que só desarmam os cumpridores da lei, enquanto os bandidos continuam armados – e os sistemas escolares baseados em teorias pedagógicas abstratas, não em resultados mensuráveis. Neste caso, o incentivo é agradar e posar de virtuoso, não elevar notas, reduzir a evasão e formar os jovens.

Sowell, que, aliás, é negro, também adverte contra explicações monocausais para as disparidades sociais e contra a tentação de soluções simbólicas que rendem aplausos, mas mostram ganhos escassos.

Debates sobre ações afirmativas e sobre segurança pública frequentemente fazem uso seletivo de dados e ignoram diferenças regionais, o capital escolar, a estrutura familiar, o perfil das vítimas e os incentivos locais. Sem metas claras, horizonte temporal, critérios de saída de programas sociais e medição de custos de oportunidade, a virtude anunciada prevalece sobre o progresso medido.

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Pois bem, como as ideias de Sowell se aplicam ao Brasil?

Por exemplo, na política econômica. Períodos de tutela de preços e expansão fiscal pouco transparente mostraram, reiteradas vezes, que segurar preços não remove as causas estruturais da inflação, apenas reprime sintomas e distorce incentivos.

Por sua vez, programas de crédito direcionado a campeões nacionais são vendidos como políticas desenvolvimentistas, mas costumam servir, basicamente, para socializar perdas e privatizar ganhos.

Quando o custo efetivo não é arcado por quem decide, a má alocação dos recursos públicos se perpetua. No debate brasileiro sobre gasto público e regras fiscais, Sowell perguntaria quem paga e com que risco. O discurso que promete reduzir desigualdade por decreto, sem discutir produtividade, concorrência e qualidade do gasto, é, na linguagem de “Intelectuais e Sociedade”, uma solução enganosa e condenada ao fracasso.

Livro "Intelectuais e a sociedade: O impacto desastroso de ideias descoladas do mundo real", por Thomas Sowell. (Foto: Divulgação/Editora AVIS RARA)

Outro exemplo é a criminalidade. Sowell argumenta que políticas de segurança devem ser avaliadas por indicadores sobre reincidência, dissuasão e número de vítimas, não por intenções nobres.

Ele certamente criticaria a leniência performática das políticas de segurança do Brasil, onde debates sobre “saidinhas”, audiência de custódia, progressão de regime e porte de armas são travados na base de slogans lacradores.

Ele diria: tragam as métricas. E perguntaria: “Qual política pode concretamente reduzir a criminalidade hoje, com os recursos existentes?” Porque, como ele sabe, a alternativa é adotar políticas que podem ser bem-intencionadas, mas que acabam ampliando o número de vítimas.

Sowell também veria com enorme cautela propostas de regulação das redes sociais com o pretexto de combater a desinformação. Não porque a desinformação não exista, mas porque a arbitragem centralizada por autoridades ou consórcios de “especialistas” é um terreno fértil para censura, abusos e perseguições.

A solução do problema da desinformação não pode ser punir o dissenso, mas estimular o embate de ideias, com responsabilização por danos mensuráveis, a posteriori, sem censura prévia.

Ele também criticaria a distorção do processo político: temas que deveriam ser debatidos e decididos no Legislativo migraram para arenas nas quais o capital retórico e a autoridade moral pesam mais que a obrigação de prestar contas aos eleitores.

O Brasil viveu, na última década, uma forte judicialização, criando uma classe de tomadores de decisão que não está submetida ao teste regular do voto, mas é altamente sensível à opinião da elite discursiva.

Em suma, Sowell recomenda deslocar o foco das intenções para o resultado, reduzindo o poder de narrativas. O seu livro desafia e incomoda classes de prestígio ao exigir delas o mesmo tipo de verificação que se cobra de engenheiros, médicos, empreendedores e gestores de chão de fábrica. Nenhuma política é boa por soar compassiva; ela é boa quando funciona em termos que podem ser auditados.

Para o Brasil, onde o discurso público tem forte carga performática e o Estado historicamente concentra poder, a disciplina intelectual proposta por Sowell é amarga, mas necessária.

Ela nos convida a revalorizar instituições que produzem feedback independente: imprensa plural com competição real, universidades que premiem pesquisa replicável, agências reguladoras com autonomia, orçamentos transparentes, Judiciário que se limite ao seu papel constitucional, evitando protagonismo político e, principalmente, um ambiente de liberdade de expressão no qual bons argumentos derrotam os maus sem que ninguém tenha medo de dar sua opinião.

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