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Afresco retratando a criação de Adão feita por Michelangelo no teto da Capela Sistina.
A criação de Adão, de Michelangelo.| Foto: Reprodução

"Você acredita em milagres?" O que uma pessoa normalmente entende por uma pergunta como essa? O que seria um milagre?

Suponho que logo venha à mente a ideia de suspensão das leis da natureza. Abrir as águas do Mar Vermelho, a cura de cegos, trazer Lázaro de volta à vida. Esses são exemplos clássicos de milagres que todo mundo, com uma educação bíblica mínima, conhece.

Mas existem formas de milagres mais recentes, que fazem parte do repertório popular, como, por exemplo, cirurgias espirituais – neste caso, a terminologia já apresenta a contaminação pela linguagem científica do senso comum.

Para se canonizar alguém, a Igreja Católica investiga a reputação de santidade do candidato. Como parte desse processo, investiga-se se o dito de fato fez os milagres que a população comum diz que ele fez. A tentativa de explicar o suposto milagre por meio de algum procedimento científico é parte desse processo. Eis a tarefa do advogado do diabo.

O reconhecimento oficial por parte da Igreja Católica do milagre – necessário para a canonização do candidato – faz parte daquilo que em estudos da religião se conhece como o poder institucional sobre a dimensão do sobrenatural.

Na Antiguidade tardia e ao longo da Idade Média, a Igreja Católica combateu toda forma de crença na manifestação do sobrenatural bárbaro ou pagão a fim de que ela instaurasse a ordem do sobrenatural europeu sob seu comando. Toda hierarquia institucional de uma religião busca esse poder oficial sobre eventos ditos sobrenaturais.

O milagre perpassa também o ser, e não um conjunto de regras universais. Tudo que existe é milagre.

Há também uma concepção de milagre mais sofisticada, no sentido de demandar um repertório filosófico ou teológico mais robusto. Esta concepção, na filosofia do século 20, está intimamente associado a alguns filósofos judeus.

Leo Strauss (1899-1973), filósofo alemão radicado nos Estados Unidos, chamou a atenção para o fato de que o hebraico bíblico nunca teve palavra para designar aquilo que os gregos chamavam de physis, a natureza com suas leis e mistérios a serem domados pela versão prometeica do conhecimento acerca da natureza.

Strauss vai dizer que, uma vez que não há natureza na Bíblia, isso implica que o ser é sustentado o tempo todo pela vontade de Deus. Seu coração a bater, o sol a brilhar, a Terra a girar. Portanto, tudo é milagre retirado do nada.

Franz Rosenzweig (1866-1929), filósofo alemão, definia a existência de tudo como estando entre o milagre e o mistério, e que uma vida é uma aventura entre a contingência e a vontade de Deus. Portanto, o milagre perpassa também o ser, e não um conjunto de regras universais. Tudo que existe é milagre.

A.I. Heschel (1907-1972), filósofo polonês radicado nos Estados Unidos, pensava categorias como espanto, encanto, maravilhamento, como sendo o tato filosófico e religioso essencial para entendermos a realidade. E por quê? Porque tudo é milagre.

No cristianismo católico francês, o escritor Georges Bernanos (1888-1948) não está longe dessa concepção quando seu pároco no livro Diário de um Pároco de Província afirma, ao final, que "tudo é graça". Portanto, tudo é milagre.

Tal compreensão do que venha a ser o milagre está muito longe do entendimento do senso comum – milagre seria a interrupção inexplicável das leis naturais – porque não existiria qualquer lei natural para ser interrompida. Se tudo é milagre ou graça, tudo é sustentado pela vontade vigilante de Deus. Não é estranha a essa concepção que essa sustentação seja signo da misericórdia de Deus para com seus seres vulneráveis e assustados.

Pessoas que são habitadas por esta concepção de milagre são atravessadas pela presença de Deus, que os indaga, constantemente, a se envolver com a sua obra. São testemunhas constantes da graça que constitui a realidade. E a graça transforma a subjetividade nesse cotidiano. Um elemento de doçura para com a realidade envolvida na graça transforma o olhar do místico que a testemunha todo santo dia.

Não é outro o entendimento do que seria uma vida mística, ou uma vida permeada por aquilo que os franceses do século 17 chamavam de "ciência dos santos".

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