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Lucifer, pintura de Franz von Stuck. Imagem ilustrativa.
Lucifer, pintura de Franz von Stuck. Imagem ilustrativa.| Foto: Reprodução

As religiões são corpos culturais e históricos que se espraiam por vários territórios das humanidades. Para além do campo da fé, da liturgia, dos textos sagrados e dos rituais em si, as religiões produzem de forma profunda uma série de elementos dinâmicos que interagem com a cultura, a política, a filosofia e mesmo com as ciências humanas e biológicas. Podemos resumir esses elementos como o componente intelectual das religiões. Sua peculiar forma de inteligência.

Essa inteligência que mescla, muitas vezes, crenças no sobrenatural e fé numa dimensão transcendente tem um gosto particular e uma capacidade precisa de refletir sobre a natureza humana – componentes do comportamento e da vida subjetiva que se repetem ao longo dos milênios e que temos acesso através de textos e documento arqueológicos – e seus condicionamentos históricos e sociais.

Um exemplo particular é aquele da literatura de ficção. No terreno do cristianismo os casos se multiplicam. Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é um dos mais famosos. Outro, também traduzido no Brasil, graças ao trabalho da editora É Realizações, é o escritor francês católico Georges Bernanos (1888-1948).

Ao contrário do que pensa nossa vã filosofia, o cristianismo está longe de ser uma mera produção de opressão, horror e ignorância. De dentro da mais profunda fé emergem formas contundentes de análise da natureza humana que calam fundo no coração daqueles que não mentem constantemente sobre nossa condição desamparada.

Satanás, mergulhado na "morosa quietude do tédio", à beira da acídia, sem mais nenhum antagonista, soçobra na apatia da depressão

Desde o padre Donissan, personagem central do conhecido Sob o Sol de Satã, escrito entre 1918 e 1923, passando pela Mouchette (Mosquinha), personagem feminino do mesmo romance, Bernanos descreve de forma "naturalista" os efeitos da presença de Satanás na vida do corpo e da alma de ambos os personagens.

Mouchette, menina bela e sensual, derrete sobre o desespero e a mentira, enquanto Donissan, padre jovem e com fama de pouco inteligente e desajeitado desde o seminário menor, recebe como suposto carisma (conceito que descreve a missão dada por Deus a uma criatura humana) viver o resto da vida sob a tutela de Satã como seu "íntimo". Seu processo peculiar de derretimento sob o sol de Satã será o risco do orgulho de querer provar para si mesmo e para sua comunidade que ele seria um santo.

Já no outro muito conhecido Diário de um Pároco de Aldeia de 1936, Bernanos, através do diário de um miserável padre bêbado de uma pequena vila esquecida do mundo, nos revela como o mal pode se recolher e se manifestar, de forma silenciosa e invasiva, como uma poeira que invisivelmente pousa sobre nossos dentes – imagem do próprio Bernanos. O tédio ao longo da vida é esse mal em forma de poeira.

Monsieur Ouine, escrito entre 1931 e 1943, publicado pela primeira vez no Rio de Janeiro – durante a Segunda Guerra Mundial, Bernanos se mudou com sua família para Barbacena em Minas Gerais – e, posteriormente, em 1946, pela editora Plon em Paris, é considerado pela crítica especializada, ainda que seja um romance muito menos conhecido do grande público, como a maior obra escrita por Bernanos.

Nos termos que François Angelier escreve no prefácio à edição de 2019 pela editora L'Arbre Vengeur, cujo título é Monsiuer Ouine ou o Apóstolo do Vazio – em tradução direta do francês –, o romance descreveria o momento histórico em que, estando Deus já morto e o bem derrotado, o mal repousa sobre si mesmo, vitorioso mas depressivo, mergulhado numa forma de "preguiça do coração", expressão de Walter Benjamin.

Satanás, mergulhado na "morosa quietude do tédio", à beira da acídia, sem mais nenhum antagonista, soçobra na apatia da depressão. Uma fina psicologia no mal, em inação dissolutiva do mundo e das pessoas à sua volta, percorre como um calafrio a narrativa do romance.

Nas palavras de Bernanos, o que resta da autêntica aristocracia – de alma – repousa sobre alguns camponeses silenciosos "que enfrentam a dureza da passagem das horas, que permanecem imóveis, através dos que balançam à sua volta, de pé como uma árvore ou um muro, sustentando o bem".

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