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Detalhe de mosaico na cidade de Pompeia, retratando a Academia de Platão.
Detalhe de mosaico na cidade de Pompeia, retratando a Academia de Platão.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

O filósofo britânico A.N. Whitehead (1861-1947) suspeitava que os avanços numa civilização são processos que podem destruir as civilizações em que eles se instalam. Estaríamos diante de um efeito colateral indesejável dos avanços nas civilizações? A verdade é que suspeitas como essas podem ser colocadas diante da crença ingênua de que, se entendermos racionalmente as coisas – supondo que isso seja compreendê-las nas suas relações causais na realidade –, saberemos como “fazê-las melhor”.

Descobrimos que existem componentes sociais e históricos na identidade sexual – exemplo de avanço no entendimento da realidade – e daí concluímos que sabemos como manipular tais componentes e organizá-los melhor do que estavam organizados até então. Descobrimos que há furos na fundamentação das crenças religiosas – outro exemplo de avanço no entendimento da realidade – e daí concluímos que destruindo a religião faremos pessoas mais felizes e melhores. Inventamos a ciência moderna – outro exemplo de avanço no entendimento da realidade – e daí concluímos que cientistas são pessoas mais inteligentes e livres de viés cognitivo como outros mortais.

As sociedades não se constituem a partir de processos de engenharia social

Mergulhemos mais fundo na história. A filosofia foi inventada na Grécia Antiga – grosso modo, a partir do século 5.º a.C. –, daí concluímos que esse fato fez bem para a Grécia de então e produziu um melhor entendimento da realidade e melhores ações nos gregos a partir de então. Não parece ser a opinião de Gilbert Murray (1866-1957), historiador da religião e literatura grega antiga. Murray tem um conceito que me parece muito operacional para explicar por que experimentos como a modernidade ou a pós-modernidade não dão tão certo quanto seus adeptos imaginam que dão – ou mesmo eventos como a democracia, o teatro grego e a filosofia não implicaram em nenhum grande “avanço” na vida grega antiga. Vejamos.

Na sua obra Five Stages of Greek Religion (“Cinco estágios da religião grega”), Murray descreve o processo contínuo e cheio de rupturas da religião grega antiga mostrando que, ao longo dos séculos, a religião grega foi se desfazendo e refazendo num processo não passível de ser reproduzido racionalmente nem repetido intencionalmente. Eis o “conglomerado herdado” que caracteriza toda forma de ancestralidade cultural – e por cultural aqui conta-se moral, religião, política, sociedade. O termo nos leva à ideia de tempo geológico para significar que processos de constituição de conglomerados culturais herdados levam milênios para se dar e nunca terminam de se constituir. E mais: ninguém sabe sua chave de funcionamento, porque ela não existe.

Por isso que, quando acreditamos que estamos num processo de destruição de crenças, superstições, preconceitos e obsessões coletivas para reconstruir racionalmente uma cultura, damos com os burros n'água, como a crença moderna no progresso do mundo. E.R. Dodds (1893-1979), aluno de Murray, suspeitava de que o surgimento da filosofia grega foi um caso como esse. Começando a corroer o conglomerado herdado do ancestral grego – a religião, a moral, os costumes, as crenças, os sonhos –, a filosofia racionalista grega não conseguiu colocar “nada no lugar”.

Em momentos de grandiosidade de uma civilização, seus habitantes podem experimentar a desmedida de crer que podem construir conglomerados herdados ao sabor dos seus gostos. Nestes gostos de hoje estão os delírios de uma espiritualidade de consumo que brinca de remendar o conglomerado antigo-medieval destruído pela experiência moderna.

As sociedades não se constituem a partir de processos de engenharia social. Um conglomerado herdado é uma montanha de camadas que se superpõe em tempo geológico sem que ninguém tenha a capacidade de saber como se deu. Os deuses, os valores, os comportamentos, os afetos vão sendo “criados” ao sabor do acaso histórico das sociedades e em cada época eles parecem ser obviamente coerentes e reais para as pessoas habitantes de cada época.

Não temos a mínima ideia de como chegamos a acreditar no que acreditamos nem valorizar o que valorizamos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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