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Ensino a distância: plataforma digital ligada a seita assusta pais nos EUA
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Cada povo elege suas prioridades no enfrentamento da pandemia. Na maioria dos países, à medida em que os cientistas foram descobrindo mais sobre o vírus, formas de contágio e grupos de risco, a prioridade foi a infância. Obviamente o melhor cenário é quando e se descobrirmos uma vacina e uma cura mas, como acontece com inúmeras outras doenças, enquanto essa descoberta não vem, utilizamos o conhecimento que os cientistas acumulam dia após dia para tentar conviver com o novo vírus.

Aqui no Brasil, decidimos deixar as crianças sem estudar para podermos ter botecos, shows, shoppings, comércio, restaurantes e bailes funk em pleno funcionamento. Nos outros países, talvez ainda não tenham o recurso de dar "pause" nas crianças enquanto os adultos trabalham, por isso tanta preocupação com pensar em onde, com quem e como elas ficam o dia todo.

Ocorre que estamos diante de um evento inédito na história do mundo e, mesmo nos casos em que a infância e a educação são prioridade num país, é muito delicado pais a mandar seus filhos à escola numa situação dessas. Aqui no Brasil, as soluções de última hora para educação a distância são o subterfúgio para não discutir a moral que nos leva a manter escola fechada para poder ter botequim aberto. Em outros países, como nos Estados Unidos, é o plano apresentado para os pais que tiveram receio de mandar os filhos ou para que se fizesse um programa escalonado de retorno.

Segundo o governo dos Estados Unidos, em 2020 há 56,4 milhões de estudantes matriculados no ensino fundamental e médio no país, sendo que 50,7 milhões frequentam escolas públicas. Para atender uma demanda deste tamanho, muitas instituições recorreram a plataformas de ensino a distância que já estavam no mercado, destinadas a escolas ou a homeschooling. Uma delas, oferecida como alternativa ao ensino presencial em diversos Estados norte-americanos, tornou-se um escândalo nacional.

Uma das plataformas aprovadas como alternativa ao ensino presencial na pandemia nos EUA foi a Acellus, que virou centro de um escândalo
Uma das plataformas aprovadas como alternativa ao ensino presencial na pandemia nos EUA foi a Acellus, que virou centro de um escândalo

Se você ainda lembra como foram os primeiros meses da pandemia, tudo era feito no desespero. Nos Estados Unidos, foram criadas novas regras para ensino a distância e o Departamento de Educação aprovou a toque de caixa mais opções de plataformas online para que escolas pudessem atender alunos. Uma das opções aprovadas foi a Acellus Learning Accelerator. Se você for ao site deles, verá depoimentos em jornais locais e escolares falando maravilhas sobre o sistema de ensino, além de uma biografia muito elogiosa e empolgante do CEO.

Pelo vídeo promocional, parece uma maravilha. As famílias que, a exemplo da minha, vivem há meses a rotina do Ensino Fundamental online, já entenderam que não é nem parecido com escola. De qualquer forma, me parece melhor que videogame e parece que pelo menos dá para manter contato com os colegas e os professores fazendo algo útil. O problema começou quando os pais, também em casa, começaram a acompanhar os detalhes das aulas dos menores.

Em poucas semanas, a Acellus virou uma sensação nas redes sociais, com os trechos de vídeos com insinuações pornográficas, de violência e incentivo à criminalidade que fazem parte do conteúdo de ensino a distância para crianças de até 10 anos de idade. Era só a ponta do iceberg. A revolta dos pais desmontou o castelo de cartas de uma seita religiosa enrolada em mentiras que conseguiu aprovar uma plataforma de ensino a distância nos órgãos oficiais dos EUA.

Vídeos inacreditáveis no material escolar

O Havaí foi o estado americano onde mais se debateu o conteúdo da Acellus, já que foi o primeiro a aprovar o conteúdo com urgência durante a pandemia. Na semana passada, de acordo com o Washington Post, a plataforma foi banida de todas as escolas. A agência internacional Associated Press tentou entrar várias vezes em contato com a plataforma para entender o que ela pretendia com vídeos tão "excêntricos" no conteúdo escolar, mas nunca obteve retorno. À televisão local do Havaí, o CEO disse que tem 3 milhões de alunos só nos Estados Unidos e nunca teve tantas reclamações quanto dos habitantes do Estado.

O problema estaria no conteúdo das aulas ou em alguma característica ou sensibilidade específica do povo do Havaí? Melhor que vejamos os vídeos e cada um tire suas conclusões.

O mais famoso é o que ficou apelidado de "Sweet Lips", numa tradução livre, "Boca Doce", publicado inicialmente na página pessoal do Facebook de uma mãe indignada. Trata-se de uma aula para crianças da primeira série, a partir de 6 anos de idade. Os dois personagens centrais do curso, o ursinho e o patinho, vão pedir ajuda a uma colega, a porquinha maquiada "Boca Doce". E então, eles têm o seguinte diálogo:
Ursinho: Boca Doce, como você conseguiu esse apelido?
Porquinha: Não pergunte. (Fica corada) Não vamos falar disso. (Dá uma risadinha)

Um outro vídeo, de alfabetização, para crianças pequenas, foi o que mais chamou a atenção do Wall Street Journal. Uma moça vai ensinando o alfabeto mostrando objetos que tira de uma caixa. Quando chega à letra "g", o que ela tira da caixa? Um revólver! Gun.

Um outro vídeo, destinado ao ensino infantil, é uma historinha em que o Ursinho pede ao Patinho que o ensine a ler um livro, mas o Patinho começa a sair correndo. Então, eles têm o seguinte diálogo:
Ursinho - Por que você corre tanto?
Patinho - As razões pelas quais eu corro tanto são altamente confidenciais.
(Toca sirene de polícia, que continua ao fundo, durante o diálogo.)
Patinho - Ooops, tenho que correr! (E sai correndo)
Ursinho - Espere! Você não vai me ensinar como ler meu livro?
Patinho - Fuja comigo e eu vou te ensinar quando for seguro.

Sobram outras reclamações. Há sobre deboche de atos de terrorismo, ensinar matemática fazendo contas com maços de cigarro, racismo, preconceito com mães solteiras. Houve reclamação para todo tipo de gosto entre os pais que foram apresentados à plataforma só na pandemia, quando eles também estavam deslocados de suas rotinas.

Quem é o fundador da Acellus?

O mundo sempre teve enganadores, mas a tecnologia faz com que seja mais fácil até para os menos talentosos fingir que são bons no que fazem. Só há duas formas de avaliar a credibilidade de alguém: biografia e frutos. Há séculos a humanidade paga o preço de se deixar iludir por aparência e discurso, mas nunca foi tão fácil forjar aparência e narrativa de seriedade quanto hoje.

Se você entrar no site ou na plataforma da Acellus Learning Accelerator, vai ver que parece muito profissional. Ao buscar informações sobre fundadores e diretores, todos eles terão títulos para mostrar. A instituição tem aprovação de órgãos oficiais, por isso conquistou mais de 3 milhões de alunos e atua em vários países do mundo, com destaque para o homeschooling, onde ele é permitido.

O fundador e CEO da instituição, Roger Billings, fez uma live no Facebook onde explica que é alvo de ataques difamatórios e injustos porque declaradamente é apoiador do presidente Donald Trump. O mais interessante, no entanto, é a abertura, onde salienta o título acadêmico de doutor, ostentado por ele e por sua intelocutora, também integrante do projeto educacional. Ambos são calmos, seguros, firmes nas explicações e a filmagem é muito profissional.

Mas quem é o DOUTOR Roger Billings? Na era da hiperinformação e dos magos da manipulação, pouco importa se você acredita ou não nos pais reclamando ou na justificativa da plataforma: isso é apenas um perfume de realidade. Importa saber com quem estamos lidando e se essa pessoa pode ter o controle do que nossos filhos estudam e coletar dados deles. Na prática, proponho um exercício de conhecer a pessoa escolhida para cuidar de 3 milhões de crianças na ausência dos pais.

Tudo o que você fez na sua vida teve um caminho. Às vezes nos esforçamos muito sem colher o sucesso e, em outras, simplesmente temos sorte sem esforço. Mas jabuti não sobe em árvore, ou é enchente ou alguém que botou lá. Se Roger Billings virou doutor, se orgulha do título e é dono de uma das maiores empresas de educação a distância do mundo, ou é um apaixonado por educação ou por informática. Fosse por educação, ninguém seria doido de colocar uma "Boca Doce" do conteúdo, vamos de ciência.

Roger Billings é apaixonado por ciência desde criança e faz parte da quinta geração de mórmons de Provo, praticamente o berço dessa religião em Utah. A mãe o presenteava com telescópios e kits de química. Adolescente, tornou-se apaixonado pela ideia de combustíveis alternativos e o pai permitiu que tentasse converter o carro da família para abastecimento a hidrogênio, o que se tornaria depois uma obsessão. Ganhou uma bolsa de estudos da Brigham Young University, ligada aos mórmons, mas largou a faculdade para atuar como missionário no Brasil por dois anos. Na volta, conseguiu se formar engenheiro químico acumulando cursos por correspondência.

As coisas começaram a desandar em 1985, quando a Igreja Mórmon oficialmente abandonou a poligamia. Roger Billings rompeu com a religião, fundou uma igreja própria e também uma universidade própria, onde conseguiu os títulos que tem hoje. Logo em seguida, entrou nos longos embates entre inventores e indústria do software nos EUA.

Na década de 1990, houve enormes batalhas jurídicas entre empresas e gênios da informática por patentes de produtos. Roger Billings foi um deles, retratado pelo L.A.Times em 1994 na disputa com a já falecida Novell, especialista em redes, pelo uso da tecnologia que ele havia criado. Tinha então 46 anos e alegava que a empresa da sua cidade natal e várias de suas clientes estavam lucrando horrores com algo que ele inventou e patenteou, uma nova forma de distribuir dados. Grosso modo e, guardadas todas as proporções do avanço tecnológico, a ideia da plataforma educacional Acellus é essa, a de distribuir dados. Quase 15 anos depois, já apelidado pela imprensa de "Doutor Hidrogênio", perdeu o processo milionário.

O que há por trás de um nome pomposo?

A qualidade educacional da Acellus poderia ser aferida pelo fato de ser um programa da "International Academy of Science", cujo site é http://www.science.edu. Nessa era em que perguntar parece pecado e todos parecem forçados a opinar sobre tudo, eu não tenho a menor dúvida de que este argumento foi fundamental para que a plataforma, muito semelhante a tantas outras que estão no mercado norte-americano, chegasse a tantas escolas.

Cada ponto luminoso é uma escola que adotou o sistema Acellus no mundo.
Cada ponto luminoso é uma escola que adotou o sistema Acellus no mundo.

Quem faz parte da tal "International Academy of Science"? É uma entidade oficial, uma ONG, uma instituição acadêmica, uma reunião de acadêmicos? "A International Academy of Science é uma organização sem fins lucrativos 501(c)(3) que vem promovendo a ciência e a educação há mais de 30 anos. A Academia oferece programas de graduação e pós-graduação em ciências aplicadas que preparam os alunos com importantes habilidades práticas e experiência necessária para o sucesso no local de trabalho. A Academia também desenvolve cursos Acellus interativos baseados em vídeo, usados ​​por milhões de alunos do ensino fundamental e médio em todos os 50 estados e em todo o mundo", diz o website. Não há nomes de quem fundou, quem faz parte, a história, nada.

Pois bem, o fundador da International Academy of Science é o próprio Roger Billings, que lidera a organização até hoje. Os diplomas universitários que ele e outros integrantes da plataforma educacional conseguiram foram emitidos pelos cursos universitários criados e dirigidos por eles próprios. A instituição foi criada dentro da "Igreja de Jesus Cristo em Zion", considerada uma seita polígama, da qual Billings se dizia o profeta. Depois de muita polêmica e acusações, a seita foi fechada e a academia continuou.

Nada do que foi dito aqui compromete a qualidade do software nem do material educativo. Apesar de tudo isso que parece malandragem, não há nada de ilegal nas empresas. As plataformas funcionam bem e há muitos casos de gente que diz ter visto benefícios. Mas, como mãe, eu me faço a pergunta: deixaria meu filho de 9 anos sozinho com o brilhante "Doutor Hidrogênio" Roger Billings? De jeito nenhum, só que eu sou antiquada.

O Estado do Havaí decidiu não usar mais a plataforma. Pais na Califórnia e na Flórida, depois da polêmica na mídia, começaram a prestar mais atenção no conteúdo e já iniciaram protestos. É apenas o primeiro caso de um desafio que se tornará cada vez mais comum, o de qualificar educadores preparados para um mundo analógico a selecionar material para a realidade digital. O processo de seleção de uma plataforma de educação a distância é muito diferente de selecionar livros didáticos, por exemplo, e depende de habilidades que nem se imaginava que educadores precisassem ter.

A tecnologia está revolucionando o ambiente político, o debate público, o mundo do trabalho, a medicina, a saúde pública, a justiça. Os que primeiro reconhecem a necessidade de combinar talentos andam mais rápido. Nós, adultos, fomos criados num mundo analógico e tentamos enxergar como a tecnologia se adaptou a ele. É um erro, a tecnologia mudou o mundo e a forma com o interagimos. As crianças de hoje já pensam de forma digital, precisam ser educadas para o futuro e não para um mundo que nem existe mais.

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