• Carregando...
Você daria sua vida pela prisão em segunda instância?
| Foto:

"Viveram pouco para morrer bem, morreram jovens para viver sempre". Muitos da minha geração, criados em São Paulo, ouviram essa frase repetidas vezes e foram levados aos finais de semana em passeios de carro à praça da República, esquina da Barão de Itapetininga, onde se deu o estopim da Revolução Constitucionalista de 1932. A se levar em conta o número de avós e bisavós da década de 80 que afirmavam ter participado do confronto, toda a cidade estava lá.

Toda família paulistana tem uma história, verdadeira ou inventada, a contar sobre o 9 de Julho, a Revolução Constitucionalista de 1932. Das histórias que eu cresci ouvindo aprendi duas coisas: todos que lutam arriscam algo e liberdade nunca é dada, é conquistada. É sob este ponto de vista que analiso a suposta luta contra a corrupção e a prisão em segunda instância.

 Arquivo de família - Revolução Constitucionalista de 1932 - Madeleine Lacsko
Arquivo de família - Revolução Constitucionalista de 1932 - Madeleine Lacsko

Compartilho com vocês uma lembrança familiar, guardada desde 1932, dada àqueles que contribuíam financeiramente para ajudar o levante contra o governo. O estopim havia sido o MMDC. Em 23 de maio de 1932, os estudantes paulistanos resolveram invadir a sede do partido político-militar que apoiava Getúlio Vargas, mas o governo se antecipou e reagiu a balas e granadas. Quatro adolescentes morreram, um deles de 14 anos de idade. Iniciou-se uma revolta armada que obviamente não era unanimidade, mas envolveu muitas famílias inteiras em São Paulo.

Mário Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa e Antônio Camargo de Andrade foram enterrados no monumento mais alto de São Paulo, o Obelisco do Ibirapuera, onde também estão sepultados outras centenas de heróis de 1932. Era um passeio escolar tradicional da minha geração. Para muitas famílias, era visita obrigatória a reverência a quem deu a vida por São Paulo. Quando o obelisco foi reaberto em 2014, depois de uma reforma, fiz questão de levar lá meu filho. Temos obrigação de honrar a memória dos que pavimentaram o caminho para que possamos desfrutar da liberdade que temos hoje.

Nunca tive a pretensão de ser imparcial por saber que é humanamente impossível. Minha análise da luta contra a corrupção e da prisão em segunda instância é feita sempre a partir das minhas raízes e dos meus valores. Para mim, trata-se mais de um processo de catarse coletiva que de mudança efetiva e a população sabe disso.

O valor de uma luta é exatamente o quanto cada um está disposto a arriscar por ela. Você arriscaria a sua vida pela aprovação da prisão em segunda instância? Provavelmente não. E isso não tem nada a ver com a força das suas convicções ou sua coragem, provavelmente é a mesma das famílias que arriscaram tudo na Revolução de 1932. A diferença é o quanto de informação segura você tem sobre o tema e a certeza que tem de que realmente essa luta soluciona a questão para as próximas gerações.

A tecnologia tornou possível ter a sensação de lutar, a adrenalina, a ilusão de coragem. Desde a realidade virtual dos games até os clusters radicalizados pelos algoritmos de redes sociais, há um infinito de produtos para alimentar nosso ego dentro da lei do mínimo esforço. E eu falo em esforço mínimo mesmo, como lutar por uma causa que a gente nem sabe direito o que é só pela adrenalina de ficar em um grupo que parece tão aguerrido e tão legal. A autoindulgência é poderosa contra a disciplina na alma humana.

Muito antes da ilusão de liberdade nas redes sociais, uma coisa dada de graça por gigantes bilionárias financiadas por fundos de investimentos, havia a ilusão da liberdade de imprensa dada de graça pelas assessorias de imprensa. O fenômeno, que começa a ser documentado na década de 1960, passa a inserir na nossa realidade os não-fatos, ou seja, tratar como fato o que é factóide.

Em seu livro "The Image", o diretor da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Daniel Boorstin, começa a quantificar o equilíbrio entre fatos e não-fatos a partir do momento em que começam a ficar populares as entrevistas coletivas à imprensa. O modelo anterior de coleta de informação era o oposto, a imprensa provocava a resposta da autoridade. Agora não, as autoridades decidiam o que era importante, convocavam a imprensa e, porque tinham mandado os repórteres lá e tinham um jornal a imprimir, aquilo passava a ocupar um lugar que talvez não merecesse. Estamos falando da década de 1950.

Hoje, muitas pessoas falam em "cortina de fumaça" quando um político dá uma declaração bombástica e a imprensa entra em frenesi. Têm razão: ainda que não sejam estudiosas do tema, são parte do contexto. Cria-se o não-fato, que gera muitos cliques, e o fato que interessa ao público acaba apequenado. Quem se dedica a ele não recebe a mesma atenção e o mesmo retorno, não há incentivo para essa atividade.

As famílias que formam este público muito provavelmente arriscariam grandes coisas pelos fatos, aquilo que mudaria o destino de seus filhos e netos de forma definitiva. Mas obviamente não vão se meter a arriscar nada por algo que sabem, lá no fundo, ser cortina de fumaça. Podem até ter opinião, se divertir participando do debate, participar de campanhas e até ir a passeatas. Só que arriscar exige a certeza de que aquilo é definitivo e de que as pessoas que militam pela causa têm credibilidade. O cidadão não é estúpido, pode gostar da brincadeira mas não vai se arriscar.

O caso da prisão em segunda instância é precisamente este: suprir a carência da sensação de luta sem ter de lutar mesmo. O cidadão pode parecer muito apaixonado nas redes sociais, mas não vai se arriscar por uma causa que não entendeu direito e pessoas cujo passado desconhece. É um mundo muito diferente daquela pequena São Paulo em que as famílias sabiam quem era quem e quem veio de onde.

Há, evidentemente, vários casos noticiados em que pessoas pagariam por seus crimes antes ou esses crimes não prescreveriam caso a pena começasse em segunda instância. É por isso que o cidadão milita pela causa, porque quer consequência para quem infringe a lei. Mas seria essa a solução para a impunidade? Se fosse, arrisco dizer que mais da metade das figuras públicas que militam pela prisão em segunda instância estariam contra. O cidadão comum pode não dizer isso claramente, mas sabe: é algo que muda um pouco mas não resolve, algo bem conveniente para os nossos políticos.

Se a prisão fosse na vigésima instância, mas o processo nunca durasse mais de um ano, você ficaria com esse modelo ou o da segunda instância? Essa é a questão: embora pareça uma melhora, a medida deixa o cidadão desconfiado. Há inúmeros casos famosos que demoraram anos para o julgamento em primeira instância, o que mudaria prender em segunda?

Como diminuir a impunidade, então? Há uma reforma no Código de Processo Penal que já está sendo feita, capitaneada pelo deputado Fábio Trad. Mas é uma coisa muito sem graça para parlamentar fazer post de luta contra a corrupção e subir hashtag afetando virtude em ano eleitoral. Melhor pegar outro tema, uma coisa mais fácil, mais eletrizante, que seja mais rápida e dê slogan. E essa parte é a mais fácil, a técnica. A mais difícil é a cultural, fazer a lei ser igual para todos.

No mesmo ordenamento jurídico, o cidadão comum é tratado com muito mais rigor do que os cidadãos que têm dinheiro, prestígio ou poder. Qualquer deslize ou desatino do cidadão é punido de forma implacável, mas os poderosos têm um oceano aberto de recursos e justificativas técnicas para não pagar pelo que fazem. Em que lei está isso? Está na nossa cultura, que aceita o tratamento diferenciado e faz a catarse em lutas que não mudam a ordem das coisas.

Há uma forma muito simples de diferenciar as lutas fictícias da era dos não-fatos das lutas reais: o legado. Nas redes, vence o que lacra ou mita na hora, pouco importa o que fez antes da vida ou depois, pouco importa se mente ou diz a verdade, pouco importam os frutos daquela árvore. Na vida real, uma luta é feita de várias batalhas e a vitória é dada pela coerência e pelo legado, sempre pelos frutos.

São Paulo perdeu a Revolução de 1932. No ano seguinte, Getúlio Vargas se viu forçado a instalar a Assembleia Nacional Constituinte e, pela primeira vez, as mulheres votaram no Brasil. Que nos inspirem o espírito dos nossos heróis de 9 de julho e as palavras do general Bertholdo Klinger alguns anos depois do conflito: "Fomos obrigados a uma rendição incondicional, para poupar a São Paulo, a todo o Brasil, dias mais amargos ainda. Mas fizemos triumphar a nossa idéa: a volta do paiz ao regimen constitucional. Obrigamos o governo a realizal-a. E, conseguido o nosso objectivo, podemos mais uma vez dizer que a santa guerra em que São Paulo e Matto Grosso se bateram pelo Brasil livre contra o Brasil escravisado, o vencido venceu o vencedor".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]