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A ditadura de Xi Jinping acaba de descobrir que pode decidir por conta própria o destino dos bispos católicos, que mais cedo ou mais tarde o Vaticano referendará as decisões de Pequim.
A ditadura de Xi Jinping acaba de descobrir que pode decidir por conta própria o destino dos bispos católicos, que mais cedo ou mais tarde o Vaticano referendará as decisões de Pequim.| Foto: EFE/André Coelho

Três meses atrás, escrevi aqui que o ditador chinês, Xi Jinping, havia colado um enorme #sóquenão em uma afirmação do papa Francisco: em 2018, comentando o recém-assinado e até hoje secreto acordo entre o Vaticano e a China, o pontífice dissera que “a nomeação [dos bispos para dioceses chinesas] é de Roma; a nomeação é do papa. Isto é claro”. Pois dias atrás a diplomacia vaticana mostrou mesmo que a iniciativa não é “de Roma”, mas de Pequim. No sábado, dia 15, Francisco nomeou o bispo Shen Bin para a diocese de Xangai, transferindo-o de Haimen, onde estava desde 2010. Mas a nomeação, na verdade, apenas formalizou o que as autoridades chinesas já haviam feito por conta própria em abril deste ano, sem perguntar, muito menos pedir autorização ao Vaticano, que no máximo foi apenas “comunicado” com dias de antecedência.

O cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, disse à Rádio Vaticana que o papa resolveu “sanar a irregularidade canônica (...) para o bem maior da diocese”, até porque Xangai está sem bispo desde 2014, quando o ordinário do local faleceu e ninguém foi designado para o posto – até havia (e há) um bispo auxiliar, Thaddeus Ma Daquin, mas ele está em prisão domiciliar desde 2012, o tipo de situação que o acordo ainda não resolveu em quatro anos. Só não sei onde fica, aí, o “bem maior” dos católicos de Haimen, a diocese que ficou sem bispo porque as autoridades chineses assim quiseram e o Vaticano endossou.

Eu creio sinceramente na boa vontade de Francisco em relação à questão chinesa, e em sua preocupação com os católicos chineses, perseguidos por causa de sua fé. Mas não há como ignorar o óbvio: o governo comunista de Pequim já se impôs completamente

Afinal, a situação atual é essa: Parolin fala, e Xi faz. O cardeal diz que é “indispensável (...) que todas as nomeações episcopais na China, incluindo as transferências, sejam feitas consensualmente, conforme acordado”; que “os obstáculos colocados no caminho minam a confiança e subtraem energias positivas”; que “as razões para o diálogo parecem ainda mais fortes”; que o acordo é “histórico, (...) [mas] precisa ser aplicado em sua totalidade e da maneira mais correta possível”. As autoridades chinesas, que não estão nem aí para a parolagem, transferem bispos por conta própria, seja entre dioceses reconhecidas por Roma (como Haimen e Xangai), seja para circunscrições “piratas”, da Associação Patriótica Católica Chinesa, como fez em novembro de 2022, quando Giovanni Peng Weizhao, até então bispo da diocese católica de Yujiang, foi transformado em bispo auxiliar de Jiangxi, que não tem reconhecimento de Roma, mas apenas de Pequim.

Ou seja, duas violações claríssimas do acordo em menos de seis meses, e uma delas já recebeu o aval do Vaticano – não dá nem para dizer que é como beisebol, three strikes and you’re out, porque nada indica que quando Pequim aprontar pela terceira vez haverá algum tipo de denúncia mais séria ou revogação do acordo. O “diálogo” que temos agora é basicamente a China dizendo “faremos como quisermos” e o Vaticano respondendo “sim, senhor”. Quando não havia acordo, os católicos fiéis a Roma eram perseguidos, igrejas eram demolidas, padres e bispos leais ao papa eram presos e o governo cuidava das nomeações episcopais. Agora, que há acordo, os católicos fiéis a Roma são perseguidos, igrejas são demolidas, padres e bispos leais ao papa são presos e o governo cuida das nomeações episcopais. Se for para ser assim, era melhor não ter acordo nenhum; ao menos o Vaticano não precisaria ficar fazendo malabarismos para manter as aparências.

Eu creio sinceramente na boa vontade de Francisco em relação à questão chinesa, e em sua preocupação com os católicos chineses, perseguidos por causa de sua fé. Seria realmente histórico se ele conseguisse avançar onde seus predecessores não tiveram sucesso. Mas não há como ignorar o óbvio: um dos lados já se impôs completamente. Da forma como as coisas andam, tudo o que o cardeal Parolin diga é apenas tentativa de salvar a aparência, para não reconhecer o fracasso do acordo de 2018 em criar um mecanismo de consenso para futuras nomeações episcopais. O cardeal secretário de Estado agora fala em um “escritório de ligação estável da Santa Sé na China” (China e Vaticano não mantêm relações diplomáticas; a Santa Sé reconhece apenas Taiwan), como se a presença física de um representante de Francisco em Pequim fosse capaz de mudar alguma coisa. Se por acaso mudar, o papa pode pular a beatificação e mandar Matteo Ricci direto para a canonização, porque será um milagre que valerá por dois.

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