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Com menos de um ano à frente da diocese de Charlotte, no estado norte-americano da Carolina do Norte, o bispo Michael Martin já conseguiu a proeza de colocar seu rebanho em pé de guerra graças a seu empenho em chegar chutando a porta. Em uma diocese que tinha se transformado em exemplo de convivência harmoniosa e frutífera entre tradicionalistas e demais fiéis, Martin achou que seria uma boa ideia colocar tudo a perder com um decreto draconiano, agora adiado.
No fim de maio, o bispo determinou que todas as missas tridentinas celebradas em quatro paróquias da diocese deixariam de ocorrer a partir de 8 de julho, e dali em diante essas missas seriam celebradas em uma capela designada para este fim – reparem: uma capela, em uma diocese que tem o tamanho do Rio Grande do Norte! Martin afirmava estar cumprindo as regras impostas pelo papa Francisco em Traditionis custodes, que de fato proíbe a celebração da missa tridentina em igrejas paroquiais, mas não obriga o bispo a selecionar um único local para as missas, pois fala em “um ou mais lugares onde os fiéis aderentes a estes grupos [tradicionalistas] se possam reunir para a celebração eucarística” (destaque meu). Antes de o decreto ser publicado, os padres das quatro paróquias onde havia missa tridentina pediram ao bispo que reconsiderasse a ideia, mas ele seguiu em frente.
O resultado foi oposição generalizada, inclusive de não tradicionalistas. Não só porque o bispo resolveu atropelar uma autorização dada pelo próprio Vaticano para a continuação das missas tridentinas em igrejas paroquiais, que expiraria em 2 de outubro, mas também porque, em um documento enviado aos padres da diocese com respostas a possíveis objeções ao decreto, Martin sugeriu que os tradicionalistas deveriam “realizar atos de penitência e caridade” para curar as divisões dentro da Igreja – enfim, um espetáculo de empatia e inclusão. As reclamações foram tantas que Martin resolveu adiar a implantação de seu decreto para aquele mesmo dia 2 de outubro, a não ser que antes disso venham outras orientações do Vaticano.
Bispo designou uma única capela para celebração da missa tridentina em uma diocese do tamanho do Rio Grande do Norte
Bispo também pretendia impor suas preferências sobre a celebração da missa nova
Restringir a missa tridentina não era o único plano do bispo de Charlotte; ele também pretendia impor uma série de regras sobre a celebração da missa nova que refletiam apenas sua posição pessoal, e não as determinações da Igreja sobre a liturgia. O blog tradicionalista Rorate Caeli conseguiu e publicou com exclusividade o conteúdo de uma carta, cuja autenticidade foi confirmada pelo site The Pillar, que é uma verdadeira aberração jurídica, litúrgica e teológica. Posteriormente, a diocese de Charlotte informou que se tratava de uma primeira versão de um conjunto de propostas que não foi adiante – segundo o Pillar, devido à forte oposição do Conselho de Presbíteros da diocese e de um grupo de trabalho sobre liturgia instituído pelo próprio Martin.
Muito ironicamente, depois de dizer que é sua obrigação “deixar de lado as próprias preferências para estar em comunhão com o Santo Padre, papa Francisco [o texto foi escrito antes do falecimento do pontífice], e dos meus irmãos no episcopado”, Martin não faz nada além de impor regras que saíram apenas de sua cabeça. Ainda que o texto esteja engavetado (por enquanto), vale a pena ver o que o bispo Martin pretendia fazer, e mostrar por que suas ideias eram totalmente daninhas. Vai que algum bispo por aqui ande com as mesmas intenções...
Igreja pede promoção do latim, mas Martin queria eliminá-lo das missas
A primeira delas é acabar totalmente com o uso do latim nas missas – inclusive na música. E Martin o faz alegando que “a Igreja não pede que a língua latina seja usada amplamente na liturgia”. Mentira: o Concílio Vaticano II diz, na Sacrosanctum Concilium, que “deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular”, embora “poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo” (36 – mas atenção: “lugar mais amplo” não significa buscar a eliminação total do latim), e que “tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem” (54, destaque meu). E o papa João Paulo II, na Redemptionis Sacramentum, ainda diz que “excetuadas as celebrações da missa que, de acordo com as horas e os momentos, a autoridade eclesiástica estabelece que se façam na língua do povo, sempre e em qualquer lugar é lícito aos sacerdotes celebrar o Santo Sacrifício em latim” (112).
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O argumento do bispo segundo o qual o uso do latim cria uma divisão entre “afortunados” e “despossuídos” é ridículo. Não é preciso saber latim para conseguir assistir à missa em latim. Eu não saberia travar uma conversa básica em latim, e garanto que muitos tradicionalistas também não. Mas ninguém precisa dominar o idioma: basta saber o que está no missal. Livretos bilíngues existem para ajudar a acompanhar a liturgia, como sabe qualquer um que tenha assistido a uma missa importante no Vaticano.
Uso frequente de ministros extraordinários da comunhão vai contra orientações do Vaticano
Em seguida, Martin critica as paróquias que acabaram com o uso de ministros extraordinários da comunhão eucarística, dizendo que isso “cria um ar de superioridade clerical”. Mentira de novo: existe um documento do Vaticano apenas sobre o uso de ministros leigos na liturgia. Tanto ali como na Redemptionis Sacramentum está escrito que esse uso é, como diz o nome, extraordinário: só se admite em situações de inesperado afluxo muito grande de fiéis (154 a 160). A instrução interdicasterial ainda afirma que “devem-se evitar e remover algumas práticas que há algum tempo foram introduzidas em algumas Igrejas particulares, como por exemplo: (...) o uso habitual de ministros extraordinários nas Santas Missas, estendendo arbitrariamente o conceito de ‘numerosa participação’” (artigo 8).
Vetar missa versus Deum não tem base nem jurídica, nem teológica
O bispo Martin ainda queria regular a orientação litúrgica e a disposição do altar. Ele pretendia proibir totalmente as missas ad orientem (com padre e povo voltados para o tabernáculo), embora não haja nenhum documento da Igreja dando autorização para o bispo banir essa orientação – pelo contrário, o Vaticano já teve de agir em 2000, quando outro bispo norte-americano teve a mesma ideia. Martin ainda queria exigir que as velas fossem colocadas fora do altar porque “colocá-las no altar sempre obstruirá a visão dos fiéis”; impedir que houvesse um pequeno crucifixo em pé no altar (“onde não se possa colocar uma cruz próxima ao altar, que ela seja colocada deitada na mensa para que a visão dos fiéis não seja obstruída”); e vedar até mesmo o uso de suportes para facilitar ao padre a leitura do missal! Tudo isso citando os itens 306 e 307 da Instrução Geral do Missal Romano, que no entanto nem de longe chegam a esses extremos, no máximo afirmando que as velas não impeçam “uma visão clara do que ocorre no altar” – o item 308, aliás, diz que a cruz obrigatoriamente deve ser vista pelos fiéis, o que contradiz a determinação do bispo.
Não é preciso falar latim para conseguir assistir à missa em latim; basta saber o que está no missal, e livretos bilíngues podem ajudar a acompanhar a liturgia
A respeito tanto da orientação de sacerdote e fiéis quanto da disposição do altar, eu sempre recordo as palavras muito sábias do então cardeal Joseph Ratzinger em seu magistral Introdução ao Espírito da Liturgia (traduzo da edição em inglês, que é a que eu tenho, embora exista edição brasileira). Sobre o ad orientem, ou versus Deum, diz ele:
“Na verdade, o que houve [com a mudança massiva para o versus populum após a reforma litúrgica de 1969] foi uma clericalização sem precedentes. Agora o padre – o ‘presidente da celebração’, como preferem chamá-lo agora – se torna o verdadeiro ponto de referência para toda a liturgia. Tudo depende dele. Temos de vê-lo, responder a ele, nos envolver no que ele está fazendo (...) Deus está cada vez menos no cenário. Cada vez mais o que importa é o que é feito pelos seres humanos que se reúnem e não gostam de se submeter a ‘padrões pré-determinados’. Deixar o padre virado para a assembleia transformou a comunidade num círculo fechado em si mesmo. (...) A direção comum para o oriente não significava ‘celebrar virado para a parede’, nem que o padre ‘dava as costas ao povo’: o padre nem era assim tão importante. Afinal, assim como a congregação na sinagoga se unia na direção de Jerusalém, também na liturgia cristã a congregação se une ‘na direção do Senhor’. Como diz um dos pais da Constituição sobre a Liturgia do Vaticano II, J. A. Jungmann, é mais uma questão de padre e povo olharem para a mesma direção, sabendo que estão juntos em uma procissão rumo ao Senhor.”
E, nos casos de celebração versus populum, Ratzinger acrescenta:
“Onde a direção comum ao oriente não é possível, a cruz pode servir como um ‘oriente’ interior da fé. Ela devia estar no meio do altar e ser o ponto focal comum para o celebrante e para a comunidade orante. (...) Mover a cruz do altar para um canto, para permitir uma visão desimpedida do padre, é um dos fenômenos mais absurdos das últimas décadas. A cruz atrapalha a missa? O padre é mais importante que o Senhor? Esse erro deveria ser corrigido o quanto antes, e pode ser feito sem nenhum tipo de reconstrução. O Senhor é o ponto de referência. Ele é o sol nascente da história.”
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Nem casula romana e véu escapam da aversão do bispo por reverência na liturgia
E, para terminar a lista de absurdos, Martin ainda queria proibir tanto o uso de casula romana pelos padres quanto o de véus por mulheres que estejam cumprindo qualquer função na missa (por exemplo, fazendo alguma leitura), argumentando que a casula está associada a uma preferência pela “vida litúrgica (e possivelmente teológica) da Igreja anterior ao Vaticano II” e que o véu é “expressão de piedade pessoal”. E isso que, na tal carta aos padres, o bispo admitia que “muitos dos que participam da missa tridentina na diocese de Charlotte estão em completa comunhão com o Vaticano II, o Magistério da Igreja e de seus Sumos Pontífices, e não negam a legitimidade da reforma litúrgica”... como, até onde eu sei, preferência pessoal não é pecado, só me resta concluir que Martin tem mesmo é aversão total a qualquer coisa que transmita mais piedade ou reverência na liturgia.
Enfim, se o bispo Martin realmente desistiu dessa loucura, ou se fez apenas um recuo estratégico, veremos nos próximos meses. De certo, por enquanto, só mesmo o fim das missas tridentinas nas paróquias da diocese no início de outubro, e até lá ainda podemos ter muita água rolando embaixo dessa ponte. O fato é que a “guerra litúrgica” está aí, atiçada por bispos como o de Charlotte. Não sei que grau de prioridade esse assunto tem para o papa Leão XIV, mas creio que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, ele acabará decidindo algo a respeito – não do caso específico de Charlotte, mas das restrições à missa tridentina em geral, mantendo, atenuando ou abolindo Traditionis custodes.
Rupnik fora do Vatican News, finalmente
Em agosto do ano passado eu mostrei como o Vatican News, em sua seção sobre o santo do dia, mantinha em várias datas a arte do padre esloveno abusador Marko Ivan Rupnik. Não mais: nesta segunda-feira, festa de Maria, Mãe da Igreja, a imagem já era outra. E todas as outras festas e solenidades que eu havia identificado na coluna de 2024 também tiveram a ilustração trocada. Não sei exatamente quando isso ocorreu, mas, julgando que no sábado o apresentador da EWTN Raymond Arroyo havia dito no X que as obras de Rupnik ainda estavam no site, a mudança deve ter acontecido neste último fim de semana, sorrateiramente, sem nenhuma explicação pública. É, the times they are a-changin’...











