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Cerimônia de abertura da Campanha da Fraternidade de 2023, na sede da CNBB.
Cerimônia de abertura da Campanha da Fraternidade de 2023, na sede da CNBB.| Foto: Luiz Lopes Jr/CNBB

Já fui bastante ligado em Campanha da Fraternidade. Ficava de olho para ver quando sairia o tema do ano seguinte, comprava e lia os textos-base, ia atrás dos subsídios para os encontros de jovens. Mas aí... bom, aí eu percebi duas coisas: que a Quaresma era muito mais importante, e que boa parte do discurso que eu via na CF era bem carregado politicamente.

Semana passada, mencionei de passagem a crítica que o frei Clodovis Boff fez, em seu livro sobre a Teologia da Libertação, à Campanha da Fraternidade – a deste ano, que começa amanhã, será sobre “amizade social”, seja lá o que isso queira efetivamente dizer. Hoje, transcrevo aqui o trecho em que o frade servita se refere à campanha. Ao falar de “exemplos da mudança de centro na Igreja”, Clodovis afirma:

“Quanto à Igreja no Brasil em particular, basta aqui referir um caso, importante e delicado ao mesmo tempo: nossa tradicional ‘Campanha da Fraternidade’. O que acontece aí é a superposição de uma preocupação social específica sobre uma longa e consistente tradição litúrgico-espiritual: a Quaresma. É de se perguntar se tal superposição, em si legítima, não levou, com o tempo, e à força de insistir na ‘conversão social’, a deprimir e quase sufocar a riqueza do ciclo litúrgico mais importante do ano; se a ‘conversão social’ não tomou a dianteira sobre a ‘conversão espiritual’; se o abundante material produzido pela CNBB para a questão social em foco não veio, com o tempo, a suplantar os riquíssimos textos litúrgicos desse ciclo; se, em particular, a sua via-sacra, em vez de refletir, como sempre foi, o grande drama da salvação, não reflete principalmente o sofrimento do povo, usando apenas como espelho a paixão de Jesus. A pergunta é, em suma, se a Campanha da Fraternidade, tal como é levada, não agravou o viés sociocêntrico de nossa Igreja em prejuízo de seu essencial movimento teocêntrico. Já são duas ou três gerações que viveram aquele mix de experiência quaresmal e de conscientização social, coisa que a espiritualidade contemporânea, mais espiritualista, já considera um tanto estranha. Daí saíram certamente bons militantes sociais, mas menos certamente bons cristãos, que, ainda que se empenhem no social, precisam fazê-lo sempre na base de sua experiência de fé. Só assim o cristão militante deixará de ser presa fácil da sedução secularista, como o é o militante pouco espiritualizado.”

Que porrada, não? Mas então, o que fazer? Não sou pelo fim da Campanha da Fraternidade; a Igreja brasileira precisa discutir temas sociais, tantas são as mazelas socioeconômicas que nosso país vive. Aliás, quem criou a CF não foi nenhum bispo mais identificado com a esquerda, um dom Hélder Câmara ou um dom Pedro Casaldáliga: foi dom Eugênio de Araújo Sales, quando era administrador apostólico da Arquidiocese de Natal (RN). Mas há duas mudanças importantes que, a meu ver, precisariam ser feitas para “recuperarmos” a Campanha da Fraternidade.

A Igreja brasileira precisa discutir temas sociais, tantas são as mazelas socioeconômicas que nosso país vive

A CF precisa deixar de ser realizada na Quaresma

Sei que Clodovis Boff afirma que a superposição entre CF e período quaresmal é “em si legítima”, mas ele também percebeu como ela trouxe consequências ruins. Deixemos, portanto, o período da Quaresma para que todos os católicos brasileiros possam vivê-la como a Igreja sempre quis: como um tempo forte de penitência, conversão, oração, reaproximação de Deus por meio do sacramento da Penitência, e meditação sobre o sofrimento de Cristo na cruz. E podemos deixar a Campanha da Fraternidade para outro momento, talvez um mês específico dentro do Tempo Comum. Sei que o calendário já anda meio tomado: maio é o mês de Maria; junho, do Sagrado Coração de Jesus; agosto, das vocações; setembro, da Bíblia. Mas, pensando direitinho, dá para encontrar um período bom para a CF.

Desfazer a superposição ainda serviria para deixar a CF sem “concorrência”. Hoje, é comum que padres conscientes da importância da Quaresma, de suas cerimônias penitenciais e da reflexão sobre os textos litúrgicos próprios desse tema acabem ignorando completamente a Campanha da Fraternidade – no máximo, ouve-se o hino no fim da missa e só. Separando as duas coisas, os bispos e sacerdotes poderiam se dedicar aos temas e práticas espirituais próprios da Quaresma sem deixar de lado a CF, como fazem agora – seja porque dão a prioridade correta ao período quaresmal, seja porque até gostariam de uma reflexão social, mas discordam do viés ideologizado aplicado à CF nos últimos tempos. E aqui reside o segundo passo para termos uma Campanha da Fraternidade realmente católica.

Mais Doutrina Social da Igreja e menos ideologia

A pobreza, a fome, o mercado de trabalho, a situação dos jovens, o preconceito de sexo ou cor da pele, todos esses são temas importantes e que merecem reflexão por parte da Igreja e dos católicos – é por isso que a Igreja tem uma Doutrina Social. O problema é que há Campanhas da Fraternidade que, discutindo esses temas, apresentam soluções rígidas com a pretensão de que sejam lidas como a “resposta católica” aos problemas – soluções essas que frequentemente coincidem com o ideário de esquerda. E isso afasta os padres e fiéis católicos que até estão conscientes da importância de falar desses assuntos, mas rejeitam a forma como a CF lida com eles.

A Campanha da Fraternidade precisa ficar suas raízes na Doutrina Social da Igreja e, acima de tudo, saber discutir as questões sociais respeitando a liberdade do católico em muitos temas nos quais há uma variedade de posições que podem ser adotadas. Um caso é o do mundo do trabalho. A Igreja defende alguns princípios, como o respeito à dignidade humana, a remuneração justa – sei que o conceito de “pecados que bradam aos céus por vingança” anda fora de moda, mas eles existem e “a injustiça para com o assalariado” é um deles –, ou o respeito ao descanso semanal. Disso não há como abrir mão. Mas, respeitados esses princípios, pouco importa se temos CLT, pejotização, terceirização, etc.; aqui há liberdade, e tentar empurrar um único “modelo católico de relação trabalhista” é deturpar a Doutrina Social.

Em resumo, é preciso fazer com a CF o mesmo que é preciso fazer com as Análises de Conjuntura. E talvez por isso mesmo esta segunda tarefa seja muito mais difícil que uma simples mudança de data para a campanha. Mas, se a Igreja quer ter credibilidade ao participar da reflexão social no Brasil – e ela não pode ficar de fora dessa discussão –, precisará saber falar com firmeza na defesa dos princípios sem impor respostas únicas em temas que aceitam várias possibilidades que respeitem esses princípios. Assim a Campanha da Fraternidade finalmente produzirá menos militantes sociais e mais cristãos conscientes do seu papel de ser sal e luz na sociedade.

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