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Durante essas três semanas em que estive de férias, surgiu, cresceu e perdeu força o caso da ação movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Fundação João Paulo II, mantenedora do sistema de comunicação criado pela Comunidade Canção Nova. O juiz responsável pelo caso, Gabriel Gonzalez, já rejeitou uma série de pedidos do MP-SP e marcou uma audiência de conciliação para 25 de março, ou seja, daqui a mais de um mês. Li tanto o pedido de proposição de ação enviado pelo MP quanto as alegações da defesa do padre Wagner Ferreira da Silva (presidente do Conselho Deliberativo da Fundação João Paulo II) e a decisão do juiz Gonzalez, e acredito que, independentemente do desfecho dessa ação específica, a grande derrotada já é a própria Canção Nova – mas não pelos motivos que parecem mais evidentes. Explico.
Estritamente falando, o que existe – e o que deu origem à ação – são duas situações envolvendo a Canção Nova e a Fundação João Paulo II. A primeira é uma questão de compliance envolvendo o afastamento de funcionários da fundação acusados de assédio moral; em um primeiro momento, eles haviam sido afastados, mas depois a punição foi suspensa (suspensa, não anulada) por suspeitas de que esses quatro funcionários – todos pertencentes à Canção Nova – não teriam tido direito ao contraditório e à ampla defesa. A segunda questão é relacionada aos repasses da fundação à Canção Nova: a Fundação João Paulo II, além de realizar diversas obras assistenciais e educacionais, administra a marca “Canção Nova” e entrega à comunidade valores oriundos, por exemplo, da venda de produtos que levam essa marca. O MP alegava que estava havendo uma ingerência excessiva da Canção Nova na fundação, e que haveria irregularidades nesses repasses.
Sobre as questões específicas, não sei nada além do que está nas alegações do MP e do padre Wagner. Um amigo que atua como advogado em casos envolvendo instituições religiosas me disse que infelizmente há muito problema de confusão patrimonial em fundações ligadas a igrejas (menos por má-fé e mais por desconhecimento de como funcionam essas coisas), mas, sendo verdade o que diz o padre Wagner, não é o caso da Fundação João Paulo II, cujas contas estariam todas devidamente aprovadas. O que surge de tudo isso, então, é que no fim o que ocorre é uma disputa dentro da Canção Nova pelo controle da fundação (e, temos de dizer, das centenas de milhões de reais que ela movimenta), tendo de um lado o padre Wagner e, de outro, a família Jardim – mais especificamente, Wellington Jardim (conhecido como “Eto”), sua esposa Luzia Santiago e um dos filhos do casal, Filipe Garcez Jardim, atual diretor-executivo da fundação.
Disputas internas são muito mais mortais para qualquer obra apostólica que ataques externos
Isso nos leva à minha consideração inicial. Se for isso mesmo, independentemente de como termine a ação judicial, e independentemente de quem esteja certo nisso tudo, a Canção Nova já perdeu. Como me disseram outros bons amigos, disputas internas são muito mais mortais para qualquer obra apostólica que ataques externos. Esses últimos acabam fortalecendo a comunidade, que se une para resistir. Mas, quando a briga é interna, as consequências podem ser catastróficas; o próprio Jesus já advertia sobre isso ao falar do “reino dividido contra si mesmo” em Mateus 12 e Marcos 3. E não é coincidência que isso esteja acontecendo pouco tempo depois da morte do monsenhor Jonas Abib, o fundador da Canção Nova. Se, nos primeiros anos sem o fundador, os projetos individuais ficam acima do bem da comunidade (inclusive quando os projetos individuais estão disfarçados de preocupação com o bem da comunidade), o espírito de cooperação termina e a iniciativa apostólica passa a correr sério risco.
Não digo com isso que compro integralmente as alegações da defesa. Não conheço nenhum dos envolvidos e não boto a mão no fogo por ninguém. Pode ser que haja algo errado na administração do dinheiro e, se for assim, que cada um seja punido de acordo com sua responsabilidade. Mas, de tudo o que tenho lido e ouvido até agora, inclusive de pessoas com boas fontes, parece ser mesmo um caso de briga pelo poder, e isso poderá ser fatal para uma obra que tanto bem fez e faz aos católicos no Brasil.
E o MP nisso tudo?
Quando o caso chegou ao conhecimento do público, de imediato a reação foi a de acusar uma tentativa do MP de “laicizar” a Fundação João Paulo II. É verdade que a promotora Marcela Gomes Ilha solicitava que a Justiça decretasse uma intervenção na fundação, com destituição em caráter liminar da maioria dos membros do Conselho Deliberativo e a nomeação de um interventor. Da leitura da peça preparada pela promotora fica evidente que ela vê a ligação entre Canção Nova e Fundação João Paulo II como uma ameaça a esta última, chegando a falar em “conflito de interesses” pelo fato de o padre Wagner ser presidente tanto da Comunidade Canção Nova quanto do Conselho Deliberativo da fundação.
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O juiz Gonzalez, no entanto, rejeitou o pedido, e vale a pena ler seus argumentos, bastante sensatos. Afirma ele que “não se trata de uma fundação privada que, a partir de manobras estatutárias ou fatos não previstos, viu-se sob a influência de outra instituição. Na realidade, o caso é de uma fundação pensada para uma atuação separada, mas em estreita ligação com a Comunidade (ambas tidas como instrumentos para a evangelização e atuação social), inclusive com apoio financeiro, estrutural e de mão de obra”. Ou seja, a relação íntima entre Canção Nova e Fundação João Paulo II é reflexo do desejo de seu fundador; é assim que tem de funcionar.
E o magistrado foi além, ao afirmar que não cabe ao MP tentar forçar mudanças no estatuto da fundação para restringir a participação de membros da Canção Nova no Conselho Deliberativo. “Não se pode determinar a alteração [estatutária] por se entender que a fundação será mais bem gerida de tal ou qual forma”, afirma o juiz, acrescentando que, “ainda que [os fatos apontados pelo MP sejam] verídicos, não parecem conduzir à conclusão de que a composição do órgão a partir de indicações da Comunidade Canção Nova (ainda que por outras pessoas) levaria ao afastamento das finalidades da Fundação João Paulo II”.
Talvez, mais que “laicização”, o MP pretendesse uma “descançãonovização” da Fundação João Paulo II – o que já estaria errado de qualquer maneira, já que o desejo do monsenhor Jonas era de que as duas instituições funcionassem em simbiose. O MP até publicou uma nota afirmando que não pretendia laicizar nada. Mas, convenhamos, ainda que realmente não se trate disso, estamos diante de um caso daqueles em que os italianos dizem que, se non è vero, è ben trovato – mesmo se não for verdadeiro, é ao menos verossímil.
O Ministério Público, e aqui eu me refiro tanto ao Ministério Público Federal quanto aos MPs de vários estados, é bem ativo contra a liberdade religiosa dos cristãos
E por que é tão fácil acreditar que o MP-SP estivesse mesmo querendo “laicizar” a Fundação João Paulo II? Porque o Ministério Público, e aqui eu me refiro tanto ao Ministério Público Federal quanto aos MPs de vários estados, é bem ativo contra a liberdade religiosa dos cristãos. Quem mandou abrir inquérito contra um padre que criticou a decisão do STF que equiparou o racismo à homofobia? O Ministério Público. Quem denunciou um pastor evangélico por criticar murais pintados em um túnel e que mostravam divindades de religiões afro-brasileiras? O Ministério Público. Quem quer proibir câmaras de vereadores de usar a expressão “sob a proteção de Deus” em suas sessões? O Ministério Público. Quem queria proibir alunos de escolas públicas de se reunir espontaneamente e rezar nos intervalos das aulas? O Ministério Público. Quem perseguiu escolas cristãs por conteúdos contrários à ideologia de gênero? O Ministério Público (e mais de uma vez). Quem abriu inquérito para investigar “racismo religioso” em uma alteração de letra de música? O Ministério Público. E esses são apenas alguns exemplos.
Com esse histórico de agressões à liberdade religiosa exibido pelo Ministério Público, promotores e procuradores não têm como ficar surpresos quando suas ações são vistas como manifestação de laicismo. Claro, somos amigos da verdade e chamamos as coisas pelo que elas são, e não as chamamos pelo que elas não são, e é possível que, neste caso específico, seja um exagero falar em “laicizar” a Fundação João Paulo II. Mas, se os laicistas militantes do MP não pararem de extrapolar suas funções e de querer impor às próprias preferências na marra, por meio de ações judiciais espetaculosas e TACs onde não há nenhuma conduta irregular que precise ser ajustada, a instituição continuará a ser vista como adversária dos cristãos e outros mal-entendidos virão.








