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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Exortação apostólica

Em “Dilexi te”, Leão XIV defende os pobres sem recorrer a “pobrismos”

dilexi te leão xiv
O papa Leão XIV assina a exortação apostólica "Dilexi te", em 4 de outubro. (Foto: Vatican Media handout/EFE/EPA)

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O Vaticano divulgou, na manhã desta quinta-feira, o primeiro documento magisterial do papa Leão XIV, a exortação apostólica Dilexi te (“Eu te amei”, frase encontrada em Apocalipse 3,9), “sobre o amor para com os pobres”. É um documento “a quatro mãos”, pois tratava-se de um projeto inacabado do papa Francisco – assim como a encíclica Lumen fidei, a primeira do pontificado de Francisco, havia sido iniciada por Bento XVI. Não tenho a pretensão de ficar identificando o que, no texto, é mais de Francisco e mais de Leão; nem sei se isso é realmente possível. O que sei é que o documento acerta a mão quando explica no que, afinal, consiste a chamada “opção preferencial pelos pobres”, tratando deles sem “pobrismos”, ou seja, sem transformar o pobre no fim último da religião, substituindo Cristo.

Arrisco dizer que “teólogos da libertação” não haverão de achar muita coisa de interessante em Dilexi te. Mesmo bebendo muito da fonte latino-americana, citando documentos como os de Medellín e Puebla (embora ressalte mais o de Aparecida – do qual o então cardeal Jorge Bergoglio foi o relator), Leão XIV não transforma o pobre em categoria teológica separada, cuja “libertação” seria o fim último da Igreja. Pelo contrário: ao percorrer 2 mil anos de história da Igreja e de sua preocupação com os mais pobres, no capítulo III, a exortação deixa muito claro que o motor dessa preocupação é, antes de tudo, a fé em Cristo. Foi graças a essa fé, e à convicção de que Cristo está de maneira especial no pobre (e isso quem diz é o próprio Jesus, como em Mateus 25), que inúmeros santos – como Santa Dulce dos Pobres, citada na exortação – foram capazes de fazer o que fizeram em benefício dos mais necessitados.

“Para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo.”

Papa Leão XIV, na exortação apostólica Dilexi te.

Mas deixemos de lado a Teologia da Libertação, que, a bem da verdade, nem aparece em Dilexi te a não ser com uma citação de uma instrução de 1984 da Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger – Leão XIV fala dela como um “documento que inicialmente não foi bem recebido por todos” (p. 98), e o trecho citado por ele é uma resposta à afirmação de que os católicos preocupados com a integridade da doutrina seriam cúmplices das situações de injustiça e pobreza. Vale mais a pena mostrar quão acertados são os lembretes que Leão XIV faz também a pessoas como eu e, creio, como boa parte dos leitores católicos da Gazeta, que não são esquerdistas, não defendem Estado grande, e se preocupam com tentativas de relativizar ou mudar a doutrina. O papa nos provoca, e é porque realmente precisamos ser provocados.

Nós nos preocupamos muito com um laicismo que busca reduzir a fé a um fenômeno privado, banindo a participação das religiões no debate público (normalmente porque as religiões são o último bastião de princípios que esses laicistas gostariam de eliminar, como a defesa da vida e da família). Mas Leão XIV nos alerta para um outro tipo de “privatização” da fé: aquele que nós mesmos promovemos. “A religião, especialmente a cristã, não pode ser confinada à esfera privada, como se os fiéis não devessem interessar-se também pelos problemas relacionados com a sociedade civil e pelos acontecimentos que dizem respeito aos cidadãos”, afirma o papa (p. 112). Ou seja, não podemos nos preocupar apenas em “rezar e ensinar a verdadeira doutrina”, como dirá Leão XIV mais adiante; nossa fé tem necessariamente uma dimensão social, da qual a ajuda ao pobre é a expressão mais perfeita. Ao longo de toda a exortação apostólica, o papa vai martelando em nossa cabeça: o pobre é Cristo; o pobre é Cristo; o pobre é Cristo. Se nós abandonamos o pobre, se o consideramos um estorvo, se o queremos longe, se o culpamos por seu próprio infortúnio, é a Cristo que fazemos tudo isso – mais uma vez, releiam Mateus 25.

E tampouco adianta repudiarmos o centralismo estatista da esquerda se abraçamos um tipo de liberalismo econômico no estilo “trickle-down”, no qual os mais pobres pegam as migalhas que caem da mesa onde se fartam os ricos – aliás, em Dilexi te o papa recorda a parábola do rico epulão e do mendigo Lázaro, que ouvimos na missa dois domingos atrás, e cita uma homilia do papa São Gregório Magno, lembrando que o rico não foi condenado por ter feito algo de hediondo ou por ter construído sua riqueza por meio do roubo, mas por ter gozado de seus bens terrenos sem consideração para com o pobre que estava a seu lado (p. 109). É o que fazemos, por exemplo, quando adotamos “diversas teorias que tentam justificar o estado atual das coisas ou explicar que a racionalidade econômica nos exige esperar que as forças invisíveis do mercado resolvam tudo” (p. 92). A Igreja, embora veja com bons olhos o livre mercado, jamais o absolutizou; na Centesimus annus, São João Paulo II dizia que “se por ‘capitalismo’ se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta [sobre sua avaliação moral] é sem dúvida negativa”.

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Tanto não adianta esperar que o mercado resolva tudo que, de fato, ele nunca resolveu: a pobreza pode até ser menor que em países de economia socialista, mas ela continua aí, nos desafiando, mesmo em nações prósperas. Um pobre do século 21 tem um padrão de vida melhor que um nobre do século 13? Provavelmente sim, mas até que ponto esse anacronismo interessa? Deveríamos estar comparando este pobre não com alguém que viveu 800 anos atrás, mas com as demais pessoas que vivem na mesma época que ele. “Considera-se pessoas pobres os indivíduos, as famílias e os grupos de pessoas cujos recursos (materiais, culturais e sociais) são de tal modo débeis que os excluem de um tipo de vida minimamente aceitável no Estado-membro em que vivem”, diz um documento de 1984 da então Comunidade Econômica Europeia (hoje União Europeia) citado pelo papa (p. 13).

Não terceirizemos, portanto, o apoio ao pobre. Nem ao Estado, como quem diz “é pra isso que eu pago imposto, não é?”, nem à mão invisível do mercado, como quem diz “vamos liberar o instinto animal do empreendedor que todos sairão ganhando”. A Igreja sempre propôs, e Leão XIV reforça, uma outra via, aquela na qual nós trabalhamos incansavelmente para aliviar o fardo dos pobres, porque eles não são meramente “um problema social: eles são uma ‘questão familiar’. Pertencem ‘aos nossos’” (p. 104). Quem puder, que trabalhe na esfera pública para fomentar um ordenamento social que efetivamente ataque as causas estruturais da pobreza; quem puder, que crie postos de trabalho, pois “o auxílio mais importante para uma pessoa pobre é ajudá-la a ter um bom trabalho, para que possa ter uma vida mais condizente com a sua dignidade, desenvolvendo as suas capacidades e oferecendo o seu esforço pessoal”, diz o papa (p. 115). E, a todos nós, Leão XIV encerra Dilexi te recomendando fortemente a prática da esmola – sim, essa mesma que tantos governos desencorajam afirmando que ela “perpetua a dependência”. Pois ouçamos menos as bobagens dos burocratas e mais ao Cristo que diz aos salvos “tive fome e me destes de comer”. Assim, “através daquele gesto de ajuda simples, muito pessoal e próximo, será possível que aquele pobre sinta serem para ele as palavras de Jesus: ‘Eu te amei’” (p. 121).

A “opção preferencial pelos pobres” nunca teve nada de esquerdismo, comunismo, o que for, ainda que não pouca gente tenha abusado da ideia para avançar concepções políticas contrárias à fé. Exercida como a Igreja a entende, ela nada mais é que cristianismo puro, e com Dilexit te Leão XIV nos ajuda a entendê-la e praticá-la bem.

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