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“Eu não acho que você está lendo corretamente. O papa não está fazendo pouco, ele está citando um documento que, quando foi publicado, esteve muito longe de receber elogios, um documento crítico à Teologia da Libertação, e recupera o seu ponto central. É isso que fazemos. Há controvérsia, há excessos, há dor, há pessoas que extrapolam e são punidas, há gente que extrapola e escapa sem punições, a vida é assim. Mas a Igreja segue aprendendo. Se você quer saber o que aconteceu com a Teologia da Libertação, você precisa pesquisar como a palavra ‘libertação’ é usada hoje nos documentos da Igreja. Um bom exemplo, talvez até mais eloquente, é o da palavra ‘solidariedade’. Eu tenho idade suficiente para lembrar de quando ‘solidariedade’ era vista como algo negativo, com conotação esquerdista. Talvez você não se lembre, mas eu me lembro. Hoje, há poucas palavras que soem mais cristãs que ‘solidariedade’. Isso aconteceu em menos de cem anos.
Não vejo o que você diz como um abandono, uma refutação ou um desprezo... [a jornalista diz algo parcialmente inaudível, mas ela parece perguntar se a Igreja está hoje abraçando a Teologia da Libertação após tê-la criticado] Eram os anos 80. Eu usei o exemplo de ‘solidariedade’ e você pode escrever uma tese de doutorado sobre palavras como essas, que vêm de fora do vocabulário bíblico – se bem que ‘libertação’ está na Bíblia, e o conceito de ‘solidariedade’ é forte – e levam um tempo para se incorporarem ao nosso vocabulário. Isso nos leva de volta à inculturação. Se você me pede, como representante da Igreja, para lhe explicar o que o Evangelho representa hoje, eu tenho de usar termos de nossa cultura que você entenda e que signifiquem o mesmo para você. O processo é assim, seguimos aprendendo, seguimos inculturando; se a cultura muda, precisamos mudar o vocabulário. Eu acho que sei o que você quer dizer, mas eu não vejo dessa forma na maneira como a palavra é usada, ou que tenha este significado, e nem acho que isso seja particularmente importante hoje, com todo o respeito por aqueles que sofreram naquela época.”
Foi assim que o cardeal jesuíta canadense Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, respondeu à pergunta de uma jornalista (parecia ser Nicole Winfield, da Associated Press) sobre a influência da Teologia da Libertação na exortação apostólica Dilexi te, durante a entrevista coletiva de apresentação do documento, na quinta-feira passada. A repórter havia questionado o cardeal sobre as citações a documentos do episcopado latino-americano como Medellín e Puebla, as referências à “opção preferencial pelos pobres”, e disse que Dilexi te parecia passar displicentemente por cima de toda a controvérsia sobre Libertatis nuntius, o documento de 1984 da Congregação para a Doutrina da Fé, e a “repressão” eclesial aos teólogos “da libertação”. O cardeal, como vemos, discordou da avaliação da jornalista, e deixou subentendido que a “libertação”, quando aparece na exortação apostólica do papa Leão XIV, não deve ser entendida da forma como a Teologia da Libertação a entende.
“O novum da exortação é a insistência em dizer que a opção pelos pobres e por sua libertação tem uma legitimação perfeitamente teológica, e não ideológica (política ou moral).”
Frei Clodovis Boff
Percepções sobre influência da Teologia da Libertação no documento divergem bastante
Alguns comentaristas católicos conservadores de fora da América Latina não entenderam assim, no entanto – embora não me pareçam ser a maioria. O britânico Gavin Ashenden, no seu Substack “New English Catholic”, escreveu ainda no dia 9 que em Dilexi te Leão XIV deixou a política triunfar sobre a metafísica: “Uma vez que esta é uma exortação apostólica escrita em coautoria entre dois papas sul-americanos, não surpreende que um mundo que ainda ressoa com os ecos da teologia da libertação seja subitamente citado de forma tão surpreendente como o ‘padrão-ouro’ da descoberta do lugar do pobre político nos anais da história da salvação”, escreve ele, apontando para a denúncia da crescente desigualdade econômica no mundo e para expressões como “ditadura da economia que mata”. “Começa a parecer que Leão XIV é um papa que mantém diferentes compartimentos teológicos em sua cabeça. Para nosso alívio, sua teologia da sexualidade é católica e ele defenderá e fortaleceria a Igreja contra os ataques ao casamento e à família, mas isso vem ao custo de uma certa quedinha pela reestruturação econômica marxista”, conclui ele. Um outro texto de Ashenden, publicado no dia seguinte, afirmando que Leão XIV tem “cabeça ‘progressista’ e coração católico”, foi classificado por Robert Moynihan como “uma das análises mais perspicazes do texto do papa”.
E por aqui? É verdade que alguns adeptos da Teologia da Libertação (mas não os seus principais expoentes, até onde tenho pesquisado) correram para reivindicar Dilexi te como um dos “seus” documentos. Mas... e os influenciadores, padres e bispos mais conservadores, que às vezes têm décadas de experiência identificando e combatendo o estrago que a contaminação do catolicismo pelo marxismo fez na Igreja latino-americana, o que estão dizendo? Nenhum dos que conheço e acompanho fez reparos como os de alguns desses alarmados comentaristas europeus ou norte-americanos.
Frei Clodovis Boff, por exemplo, comentou à coluna que “o novum da exortação é a insistência em dizer que a opção pelos pobres e por sua libertação tem uma legitimação perfeitamente teológica, e não ideológica (política ou moral). Contudo, não penso que isso baste para que nossos irmãos TL se deem conta disso e retifiquem sua pseudoteologia dos pobres. Continuo com minha convicção: O que a Igreja precisa hoje não é amar os pobres (quem ainda duvida disso, mesmo fora da Igreja?), mas, sim, amar o Pobre Cristo. Sem isso, não tem amor aos pobres que não se ideologize e se degrade, como aconteceu com o marxismo e em parte também com o PT”.
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O padre Leandro Rasera, organizador dos escritos do frei Clodovis, acrescenta que Dilexi te “foi uma exortação sobre os pobres à luz da Grande Tradição”. “O papa Leão se referiu, entre outros, ao magistério latino-americano, às conferências da Celam. É um autêntico magistério eclesial, inclusive porque todas as conferências foram abertas pelos papas de então, e seus respectivos documentos só foram publicados após análise e anuência da Santa Sé (o documento de Santo Domingo é muito criticado até hoje por alguns pela excessiva intervenção de Roma). Não li os comentários europeus, mas não me impressiono, uma vez que eles desconhecem, em parte, essa característica peculiar da teologia latino-americana da opção pelos pobres”, afirma. Nas mídias sociais, o padre José Eduardo também afirmou que Dilexi te “devolveu a ‘opção preferencial pelos pobres’ ao seu berço cristológico”, tirando-a “das mãos dos comissários”.
Alguém está com o “libertômetro” desregulado. Serão os de fora da América Latina, cujo sensor está disparando ao menor sinal de referências a Puebla, Medellín ou expressões como “opção preferencial pelos pobres”? Ou seremos nós, que de tanto estarmos imersos no meio desse discurso acabamos perdendo a capacidade de identificar as doutrinas heterodoxas quando elas se manifestam, e nosso sensor só dispara diante de uma barbaridade muito grande?
Mais que expressões específicas, é preciso buscar o sentido profundo do texto
Ashenden acerta em cheio quando afirma que Dilexi te poderia ter bebido muito mais na fonte de Caritas in veritate, a encíclica social de Bento XVI que descreve a crise nas estruturas econômicas – do mercado financeiro ao mundo do trabalho – como consequência da crise moral e do abandono das virtudes (curiosamente, é o mesmo argumento do papa Francisco em Laudato Si’, embora pouca gente perceba). Mas, mesmo assim, quando se trata de enxergar Teologia da Libertação em Dilexi te, eu confio mais no nosso taco.
“A pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual [...]. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.”
Papa Francisco, em Evangelii gaudium, citado por Leão XIV em Dilexi te.
Por mais que haja expressões que de fato soem como endosso às teses da Teologia da Libertação, é mais importante olhar como Leão XIV as emprega ao longo da exortação apostólica; ao menos para mim parece bem evidente que o papa não coloca o pobre (falando aqui da pessoa desprovida de bens materiais, pois a exortação bem lembra que há outros tipos de pobreza que merecem nossa atenção) no lugar de Cristo, para usar as palavras do frei Clodovis Boff na sua crítica à TL, nem está defendendo qualquer tipo de reordenamento esquerdista da economia como forma de atenuar a pobreza ou combater as desigualdades.
Quando, por exemplo, o papa critica a escolha por “uma pastoral das ditas elites, defendendo-se que, em vez de perder tempo com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais, para que, através deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes”, ele não está dizendo que não se pode evangelizar aqueles que têm recursos ou poder para de fato mudar as “estruturas” que geram ou perpetuam pobreza, mas afirmando que só isso não basta, e que esse argumento jamais pode ser usado como desculpa para deixar os pobres à própria sorte (a chave está no “em vez de perder tempo com os pobres”). Aliás, ao longo da exortação, a ideia de que a mudança espiritual é pré-requisito para a transformação das estruturas econômicas está, sim, presente, como quando Leão XIV cita a Evangelii gaudium, de Francisco, dizendo que “na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino”. Aliás, em outra citação da Evangelli gaudium, Leão lembra que “a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual [...]. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária”. Você não verá isso vindo de um teólogo da libertação, que apenas instrumentaliza o espiritual com o objetivo de recrutar o pobre para sua revolução política.
Portanto, não há motivo para olhar Dilexi te com desconfiança. Quem ainda não leu o texto, que leia – não é tão longo assim – e aprenda (ou recorde) que, muito antes de ser uma frase, a “opção preferencial pelos pobres” vive no coração da Igreja desde sempre. Não é de uma hora para outra que se vai consertar o estrago que a Teologia da Libertação fez ao sequestrar essa pauta para os seus propósitos – um sequestro que, infelizmente, também contou com a omissão dos cristãos conservadores, que deixaram temas como a pobreza e o meio ambiente virarem monopólio da esquerda, mas isso é papo pra outro dia –, e Dilexi te será uma boa ferramenta nesse longo trabalho.








