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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Aborto e imigração

Escândalo é premiar político abortista, e não a resposta do papa sobre isso

papa Leão XIV jubileu entrevista
O papa Leão XIV durante missa do Jubileu dos Migrantes, no Vaticano, em 5 de outubro. (Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA)

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Os “fiscais de papa”, aqueles que ficam esperando um deslize mínimo do pontífice (seja quem for) para desfilar toda a sua indignação nas mídias sociais, com aquele tom de “eu já sabia”, deitaram e rolaram na semana passada. O motivo foi a resposta do papa Leão XIV à pergunta de um jornalista na terça-feira, a respeito da concessão de um prêmio pela Arquidiocese de Chicago a um senador com notória militância abortista.

Semanas atrás, a arquidiocese, comandada pelo cardeal Blase Cupich, anunciou a entrega do prêmio Keep Hope Alive (“mantenha viva a esperança”) a Dick Durbin, senador democrata pelo estado de Illinois, devido a seu trabalho em prol dos imigrantes. Acontece que Durbin, mesmo dizendo ser católico, tem um histórico bem longo de defesa do direito ao aborto nos Estados Unidos – e não só isso: ele é um dos responsáveis pelo expurgo de políticos pró-vida dentro do Partido Democrata, trabalhando para que detentores de mandato contrários ao aborto fossem derrotados, nas primárias do partido, por outros democratas abortistas. É graças ao trabalho de Durbin e outros que, hoje, as chances de um pró-vida ascender dentro do Partido Democrata são zero.

Tanto a conferência episcopal dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) quanto a própria Arquidiocese de Chicago têm diretrizes bem explícitas que proíbem a entrega de prêmios e honrarias a “indivíduos e organizações cujo posicionamento público é oposto aos princípios morais fundamentais da Igreja Católica”, definição que obviamente inclui abortistas. Cupich ignorou tudo isso, e por isso teve de aguentar a crítica de mais de uma dezena de outros bispos, a começar por Thomas Paprocki, da diocese de Springfield, onde Durbin tem seu domicílio eleitoral – e na qual ele está proibido de receber a comunhão. A pressão aumentou, a USCCB estava prestes a publicar um novo texto reafirmando as diretrizes de 2004 – com o conhecimento do núncio apostólico –, até que, no dia 30, Durbin anunciou que estava recusando o prêmio.

Assim como é incoerente ser contra o aborto e a favor de tratamento desumano a imigrantes, é igualmente incoerente defender os imigrantes e ser favorável à legalização do aborto

O que o papa disse

Algumas horas antes de Durbin afirmar que não receberia mais o prêmio, Leão XIV (que é de Chicago) estava pronto para voltar a Roma depois de passar um dia de descanso em Castelgandolfo, como tem feito às terças-feiras. Ele parou para falar com jornalistas, e uma repórter da EWTN lhe fez uma pergunta sobre o caso de Durbin. O papa, então, respondeu (a tradução é minha):

“Não estou completamente informado sobre esse caso particular. Acho importante ver o conjunto completo do trabalho de alguém que tem sido senador ao longo de, se não me engano, 40 anos de serviço no Senado dos Estados Unidos [Durbin é senador há 28 anos, e está no Congresso há 42]. Compreendo a dificuldade e as tensões. Mas, como eu mesmo já disse no passado, é importante olhar para os muitos temas ligados ao ensinamento da Igreja. Se alguém diz ‘sou contra o aborto’, mas é a favor da pena de morte, não é realmente um pró-vida. Alguém que diz ‘sou contra o aborto’, mas concorda com o tratamento desumano aos imigrantes nos Estados Unidos, não sei se essa pessoa é mesmo pró-vida. São questões muito complexas, e não sei se alguém tem toda a verdade sobre elas, mas eu pediria, antes de tudo, que tivéssemos respeito uns pelos outros e que procuremos juntos, como seres humanos, e especificamente neste caso como cidadãos americanos, do estado de Illinois, e católicos, dizer que precisamos estar próximos a todos esses temas éticos, e encontrar o caminho para seguir adiante como Igreja. O ensinamento da Igreja sobre cada um desses assuntos é bastante claro.”

E isso bastou para alguns influenciadores, comentaristas e sites que vivem de mobilizar indignação – porque é assim que as mídias sociais funcionam, não é? Você gera mais engajamento enfurecendo as pessoas que elogiando ou procurando diálogo. Os bueiros se abriram e começou a ladainha do “eu já sabia”, que não daria para esperar nada muito diferente, que agora vamos ver o “verdadeiro” papa, que Leão não passa de um “novo Francisco”, só que com respeito à liturgia do cargo. Besteira, besteira pura.

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A túnica sem costura do cardeal Bernardin

O raciocínio de Leão XIV remete diretamente à ideia da “veste sem costura”, popularizada principalmente pelo cardeal Joseph Bernardin, que foi arcebispo de Chicago entre 1982 e 1996 – lembrem-se, é a cidade natal do papa; ainda que Robert Prevost não tenha vivido lá durante quase todo o período de Bernardin à frente da arquidiocese, é impossível que ele não conhecesse o conceito, que aliás é familiar a todo católico norte-americano e já existia alguns anos antes de Bernardin se tornar seu principal divulgador. Ele toma emprestada a imagem da túnica de Cristo, que não tem costura alguma (João 19,23), para defender que o cristão precisa ter uma ética consistente em todos os temas que dizem respeito à vida humana: não só aborto, mas eutanásia, guerra, pena de morte, discriminação, miséria – e, mais recentemente, também imigração. A mensagem de fundo é a de que toda vida humana é digna de proteção.

Impossível discordar. E qualquer pessoa com dois neurônios conectados pode chegar à conclusão de que, assim como é incoerente ser contra o aborto e a favor de tratamento desumano a imigrantes, é igualmente incoerente defender os imigrantes e ser favorável à legalização do aborto. Se Leão XIV tivesse terminado o raciocínio com um exemplo desses, 95% do ruído que sua resposta provocou teria sido evitado; foi uma pena que ele não tenha feito isso, mas, como eu disse, essa é uma conclusão bastante óbvia de toda a ideia da “veste sem costura” e, sendo assim, não há como concluir que o papa estivesse defendendo Durbin ou a entrega do prêmio ao senador. Nessa parte, só lamento o uso indevido do termo “pró-vida”, que no jargão político americano (e talvez mundial) serve para designar uma militância bem específica, aquela contra a legalização do aborto. Misturar o aborto com outros temas para decidir quem é pró-vida e quem não é acaba enfraquecendo o termo – que é nada mais que isso, um slogan, não uma categoria teológica ou moral.

As fraquezas da ideia de “veste sem costura”

Pedir coerência do católico é o mínimo; os americanos até criaram um termo, “cafeteria Catholics”, para descrever gente que se diz católica, mas que só acredita, defende e pratica o que acha conveniente, enquanto despreza o que não lhe agrada, o que é difícil, o que não entende. O princípio da ética de vida consistente é razoável, mas tem dois pontos fracos.

O primeiro deles é o risco de que ele acabe igualando em importância temas que não têm o mesmo valor. No memorando que enviou em 2004 para o então cardeal Theodore McCarrick sobre a possibilidade de políticos abortistas comungarem, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger (que depois se tornaria Bento XVI), escreveu: “Nem todas as questões morais têm o mesmo peso que o aborto e a eutanásia”. E George Weigel, em uma coluna sobre a fala de Leão XIV, lembrou uma homilia de São João Paulo II nos Estados Unidos, em 1995, na qual o pontífice afirmou que os Estados Unidos não podiam se tornar uma nação “menos sensível, menos preocupada com o pobre, o fraco, o estrangeiro, o necessitado”, mas logo depois dizia que “o direito à vida é o primeiro dos direitos (...) os católicos americanos precisam estar comprometidos com a defesa da vida em todos os seus estágios e em todas as situações”. Aborto e eutanásia, portanto, não são apenas dois temas em uma enorme cesta de dilemas morais igualmente importantes; eles são prioritários (o que não significa que os outros sejam irrelevantes, claro).

cardeal blaise cupichO cardeal Blase Cupich, em foto de 2018: arcebispo de Chicago resolveu contrariar diretrizes da conferência episcopal e da própria arquidiocese, mas perdeu a queda de braço. (Foto: Alessandro di Meo/EFE)

O segundo problema é que em alguns desses assuntos não há uma única “posição católica”, e sim um espectro lícito dentro do qual o católico pode eleger a postura que acha melhor. Aborto e eutanásia são intrinsecamente maus e indefensáveis em qualquer hipótese, mas na questão da imigração, por exemplo, desde que não se compactue com barbaridades (separar famílias, prender imigrantes ilegais em condições insalubres etc.), um católico pode defender livremente leis migratórias mais estritas ou mais permissivas. Voltamos ao memorando de 2004: “Se um católico discordasse do Santo Padre sobre a aplicação da pena capital ou sobre a decisão de ir à guerra, isso não o tornaria indigno de se apresentar para receber a Sagrada Comunhão. Embora a Igreja exorte as autoridades civis a buscar a paz, não a guerra, e a exercer parcimônia e misericórdia na punição dos criminosos, ainda seria permitido pegar em armas para repelir um agressor ou recorrer à pena capital. Pode haver uma diversidade legítima de opiniões, mesmo entre católicos, sobre ir à guerra ou aplicar a pena de morte, mas não sobre o aborto e a eutanásia”, escreveu Ratzinger.

(Sim, eu sei que o papa Francisco mudou o trecho sobre a pena de morte no Catecismo, e confesso que acho essa uma das medidas mais complicadas do seu pontificado, porque ela dá margem para uma interpretação segundo a qual a Igreja considerou lícita por 2 mil anos uma prática que na verdade “atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”. Mas isso é assunto para outra hora.)

Dito isso, Leão XIV está dando a mesma importância a todos os temas, ou tentando impor uma única resposta a assuntos nos quais há liberdade para o católico? Só pela resposta que ele deu à EWTN, não há como saber.

Esse tipo de entrevista realmente não é uma boa ideia

Uma das primeiras coisas que chamaram a atenção quando Leão XIV foi eleito era o seu cuidado com as palavras. Ele escolheu escrever seu primeiro discurso, e sempre fala com um papel na mão, evitando improvisos. Só que improviso é o que mais ocorre quando você é cercado por um bando de jornalistas lançando perguntas e colocando microfones em sua boca. E o risco de sair algo incompleto, impreciso, precipitado, é bem maior. O papa começou a resposta dizendo que não estava por dentro dos pormenores do caso. Talvez tivesse sido melhor parar ali mesmo, sei lá, dizer que ele não é onisciente, nem tem obrigação de ter opinião sobre tudo o que acontece (mesmo quando são coisas que acontecem dentro da Igreja).

Se Cupich, que era tido como um dos principais “representantes de Francisco” no episcopado americano, quis testar a temperatura nesse início de novo pontificado, saiu chamuscado

Como há males que vêm para o bem, talvez tenha sido providencial que esse tipo de confusão acontecesse logo no início do pontificado, antes que essas “minicoletivas” das terças-feiras se tornassem algum hábito consolidado, com mais e mais jornalistas frequentando Castelgandolfo semanalmente. Nesta terça, dia 7, o papa parou mais uma vez para falar com jornalistas, mas disse que não responderia a uma pergunta sobre ações da polícia migratória norte-americana em Chicago – já é um começo, sinalizando que nem toda questão será respondida por ele. Faz parte do aprendizado, como disse Leão XIV no começo de sua entrevista (longa, planejada, em ambiente controlado) ao Crux. Como faz parte do nosso aprendizado entender que entrevistas não são, nunca foram, nunca serão magistério pontifício.

Não criemos pânico

No fim das contas, Durbin não recebeu o prêmio, o que é excelente. O cardeal Cupich ficou muito chateado com isso; ele até tentou sair por cima, dizendo que estava apenas colocando em prática uma diretriz do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre “estabelecer diálogo” com políticos contrários ao ensinamento da Igreja sobre o aborto – só não explicou como é que premiar esses políticos vá ajudá-los a ver seus erros. Muito interessante foi o fato de nenhum cardeal americano ter saído publicamente em defesa de Cupich (nem mesmo o cardeal McElroy, de perfil muito parecido), enquanto bispos espalhados pelos EUA se juntavam ao coro de críticos. Se Cupich, que era tido como um dos principais “representantes de Francisco” no episcopado americano, quis testar a temperatura nesse início de novo pontificado, saiu chamuscado.

Eu gostaria que o papa tivesse respondido de outra forma, ou simplesmente dito que não comentaria um caso que não conhece a fundo? Certamente. O que aconteceu na terça passada, no entanto, está muito longe de ser o fim do mundo que sites, comentaristas e influenciadores raivosos andam anunciando por aí. Nenhum papa é perfeito; todos os que vieram antes nos decepcionaram em algo, Leão XIV haverá de nos decepcionar, e seus sucessores também. Mas Cristo sustenta a Igreja, e não custa nada acreditar nessa promessa. E rezemos muito pelo papa: para que tenha um pontificado não como eu quero, não como os outros querem, nem como ele mesmo quer, mas como Deus quer.

Atualização

A coluna foi atualizada com a informação sobre a conversa do papa com jornalistas na noite de 7 de outubro.

Atualizado em 08/10/2025 às 09:04

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