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Com poucos meses de pontificado, o papa Leão XIV quebrou um pouco a discrição que lhe é habitual e concedeu uma longa entrevista, em duas partes, à jornalista Elise Ann Allen – esposa do megavaticanista John Allen Jr. –, do site Crux. As conversas ocorreram em julho, mas foram publicadas agora, no Crux e em um livro que ela escreveu sobre o novo papa, e que acaba de ser lançado em espanhol; a edição em francês está prevista para sair ainda este ano, e traduções em outros idiomas, inclusive o português, devem ser lançadas no início de 2026. “Progressistas” surtaram com algumas afirmações de Leão XIV sobre a família; conservadores como o site InfoVaticana surtaram, concluindo pela entrevista que Leão XIV não passaria de um Francisco com mais respeito pela liturgia do cargo – não usaram essas palavras, mas a ideia é essa. Depois de ler as seis partes da entrevista publicada pelo Crux, minha conclusão é de que o InfoVaticana e assemelhados estão fazendo tempestade em copo d’água.
Leão XIV sabe para que está lá
Questionado logo na primeira parte da entrevista sobre como ele entende o papado, Leão XIV diz – mais de uma vez – que seu papel é “confirmar os irmãos na fé”: “espero ser capaz de confirmar os demais em sua fé, porque essa é a tarefa mais fundamental do sucessor de Pedro”, afirma ele. Na quinta parte da conversa, quando perguntado sobre como o clima atual de polarização pode afetar seu pontificado, Leão ainda respondeu que “meu papel é anunciar a Boa Nova, pregar o Evangelho (...) não vejo meu papel principal como o de alguém que tenta resolver os problemas do mundo. Não vejo essa como uma tarefa minha, embora eu ache que a Igreja tem uma voz, uma mensagem que precisa continuar a ser pregada, e em voz muito alta”.
Mas, além dessa compreensão sobre o seu papel como papa, Leão XIV sabe também que foi eleito em um conclave no qual a ideia de unidade intraeclesial foi muito discutida. Também a Igreja se tornou vítima da polarização, e não me interessa discutir aqui de quem é a culpa por isso, mas sim reforçar essa realidade para que possamos entender melhor muitas das respostas que Leão XIV dá nessa entrevista. Um papa disposto a recriar pontes dentro da Igreja certamente vai se preocupar em dar respostas que não antagonizem nem afastem nenhum grupo – nem o daqueles que desejariam um aprofundamento das reformas de Francisco, e até mesmo mudanças na doutrina; nem o daqueles que acham que Francisco foi longe demais e gostariam de reverter ao menos algumas mudanças. Ele mesmo diz: “estou tentando não continuar a polarizar, nem promover polarização na Igreja”. Isso não quer dizer – e a leitura das respostas mostra isso – que Leão está incentivando um “meio termo”, mas apenas que ele não é alguém que chega com o pé na porta.
Sobre os católicos LGBT, acolher as pessoas não significa concordar com o pecado
Elise Ann Allen não deixou de fora nenhuma das questões mais complicadas que afligem a Igreja hoje – ou ao menos do ponto de vista do Ocidente rico, já que em outras regiões do mundo as preocupações são outras. Na sexta e última parte da entrevista, a jornalista perguntou ao papa sobre a comunidade LGBT, e o pontífice inclusive começa a resposta mencionando o comentário de um cardeal para quem “o mundo ocidental está obcecado com a sexualidade”; o papa diz que “para muitas pessoas, em outras partes do mundo, essa não é uma questão fundamental quando se considera como devemos tratar uns aos outros”.
“Ser o papa, sucessor de Pedro, com a missão de confirmar os outros na fé – que é o mais importante –, também é algo que só pode acontecer pela graça divina, não há outra explicação.”
Papa Leão XIV, em entrevista à jornalista Elise Ann Allen.
Leão XIV diz que ainda não tem um plano sobre como deve agir em relação a esse tema, mas que Francisco estava certo quando dizia que “todos, todos, todos” estão chamados a fazer parte da Igreja. Mas logo acrescenta: “eu não convido uma pessoa porque ela tem ou não tem determinada identidade, mas porque ela é um filho ou filha de Deus. Todos são bem-vindos, e vamos nos conhecer e respeitar mutuamente”. E logo emenda descartando qualquer mudança na moral sexual católica – sinceramente, esqueçam o “no futuro próximo”, que para mim soa mais como uma concessãozinha diplomática que como um sinal de que o papa admite alterações futuras.
Sua defesa da família é enfática: “Eu já falei sobre o casamento, como também falou Francisco antes de mim, disse que a família é homem e mulher, unidos em um compromisso solene, abençoado no sacramento do Matrimônio (...) As famílias, o que chamam de ‘família tradicional’, precisam ser apoiadas. A família é pai, mãe e filhos”. E o papa ainda criticou as conferências episcopais que andam publicando ritos oficiais para abençoar pares homafetivos, dizendo que isso se opõe ao que está em Fiducia supplicans. “O documento basicamente diz que, claro, podemos abençoar as pessoas, mas não se pretende ritualizar algum tipo de bênção, porque não é isso que a Igreja ensina (...) os indivíduos serão aceitos e recebidos”, diz o papa, aqui usando “indivíduos” em contraposição aos pares homoafetivos.
“Ah, mas o papa recebeu o padre James Martin, e ele disse que...”
Saindo um pouco do que o papa disse na entrevista, causou uma boa dose de escândalo o fato de Leão XIV ter recebido, no começo de setembro, o padre James Martin, o maior representante do identitarismo LGBT dentro da Igreja. Quanto a isso, não vejo o motivo da rasgação de vestes. Ontem mesmo o papa recebeu o cardeal Robert Sarah, que já tinha sido escolhido como enviado pontifício a uma celebração na França; Leão já concedeu audiência ao cardeal Raymond Burke, e enviou-lhe uma carta afetuosa por ocasião dos 50 anos de sua ordenação sacerdotal. Sarah e Burke são firmemente opostos a tudo o que Martin defende; que conclusão, então, tiramos disso? Que o papa – cujo pontificado ainda está no começo – deve estar conversando com todo mundo que lhe pede um pouco de seu tempo, e só.
A diferença é que o padre Martin saiu do encontro dizendo que Leão XIV estava totalmente comprometido com a abordagem de Francisco em relação aos católicos LGBT. Mas isso é o que Martin disse, e só temos o seu lado da história, porque o Vaticano nem desmentiu, nem confirmou. Para mim, até segunda ordem isso me parece uma simples tentativa de “amarrar” o papa Leão a um determinado modo de fazer as coisas que agrada quem faz esse tipo de divulgação. Veremos.

Ordenação de mulheres também está fora de cogitação
Antes da pergunta sobre a comunidade LGBT, Elise Ann Allen havia perguntado sobre o papel das mulheres na Igreja. Leão XIV confirmou a intenção de manter uma das reformas feitas por Francisco na Cúria Romana, possibilitando a nomeação de mulheres para cargos de comando, e até aí não vejo problema algum, porque de fato nada impede que uma mulher de competência comprovada ocupe postos de destaque nos órgãos internos da Igreja; mas todos sabemos que o objetivo final da militância não é esse; é a ordenação ao sacerdócio, ou pelo menos ao diaconato.
Sobre a ordenação sacerdotal, o papa não diz nada, até porque João Paulo II já disse tudo o que era necessário em Ordinatio sacerdotalis; quanto ao diaconato, Leão XIV afirma que “no momento, não tenho a intenção de mudar a doutrina da Igreja sobre o tema” (já disse acima como eu enxergo esse “no momento”; ninguém precisa entrar em pânico). Para Leão XIV, não há nem mesmo um entendimento pleno do que seja o diaconato e o papel do diácono, e sem isso nem é possível discutir decentemente um eventual acesso das mulheres a esse ministério ordenado. Em resumo, os estudos continuarão a ser feitos, mas o papa não dá nenhum tipo de esperança à militância – pelo contrário: ao insinuar que a pressão pelo acesso das mulheres ao ministério ordenado não passa de uma outra forma de clericalismo, ainda usa uma ideia muito cara ao papa Francisco para desestimular esse tipo de reivindicação.
Sinodalidade não tem nada a ver com mudar doutrina da Igreja
Também na primeira parte da entrevista, o papa foi questionado sobre a sinodalidade, esse conceito que ninguém sabe ao certo o que é e como deve ser aplicado. Para Leão XIV – que participou das duas sessões do Sínodo sobre a Sinodalidade, em 2023 e 2024, como prefeito do Dicastério para os Bispos –, “a sinodalidade é uma atitude, uma abertura, um desejo de compreender. (...) todo membro da Igreja tem uma voz e um papel a exercer por meio da oração, da reflexão (...) cada pessoa, com sua vocação própria, sacerdotes, leigos, bispos, missionários, famílias; todos, com o chamado específico que lhes foi feito, têm um papel a exercer e algo com que contribuir”, afirmou Leão XIV.
Não há absolutamente nada na resposta do papa que indique uma subversão dos papéis e das funções dentro da Igreja, muito menos um processo de submissão da doutrina à vontade de uma maioria (real ou forjada). Pelo que diz o papa, trata-se mais de não abafar nenhuma voz dentro da Igreja que tenha sua contribuição a dar, e escutar com sinceridade, e não apenas pro forma, apenas para se dizer que “todos foram ouvidos”. E esse tipo de abordagem pode ser muito interessante no último tópico específico da entrevista que vou abordar aqui nesta coluna.
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Papa vai ouvir fiéis adeptos da missa tridentina
A última pergunta da entrevista foi sobre a missa tridentina, e as divisões criadas em torno dela – nem Elise Ann Allen, nem o papa Leão XIV mencionam explicitamente Traditionis custodes. O pontífice deixa subentendido que essa abordagem “sinodal” será empregada em um tema que é “complicado”, e que ele “não sabe como vai terminar”. “Ainda não tive a chance de conversar com grupos de pessoas que defendem a missa tridentina. Haverá uma oportunidade em breve, e tenho certeza de que haveria outras ocasiões para isso” – o papa não diz, mas a “oportunidade próxima” talvez seja a “peregrinação Summorum Pontificum”, marcada para o fim de outubro e durante a qual o cardeal Burke celebrará uma missa tridentina na Basílica de São Pedro.
À luz do que foi revelado pela vaticanista Diane Montagna meses atrás, sobre as avaliações positivas a respeito da aplicação de Summorum pontificum terem sido escondidas do papa Francisco (ou ignoradas por ele, nunca saberemos ao certo) – uma história que a sala de imprensa do Vaticano não se esforçou por esclarecer –, o mero fato de o papa estar disposto a conversar com os fiéis ligados à missa tridentina é positivo. Leão XIV tem razão quando afirma que o tema também foi “sequestrado” dentro da polarização que surgiu dentro da Igreja, e que há quem use a liturgia como cavalo de batalha para outros objetivos, como a desmoralização do Concílio Vaticano II. Mas um diálogo sem intermediários entre o papa e esses fiéis será muito valioso, porque ambos poderão expor suas preocupações de forma bastante franca.
E, ainda que não vejamos no futuro próximo alguma reversão, total ou parcial, de Traditionis custodes, na entrevista o papa faz uma crítica velada a quem avacalha a celebração segundo o missal de São Paulo VI: “às vezes o, digamos, ‘abuso’ da liturgia no que chamamos de missa do Vaticano II não ajuda as pessoas que procuram uma experiência mais profunda de oração, de contato com o mistério da fé, que elas parecem encontrar na celebração da missa tridentina”. Digo por experiência própria, porque num domingo eu estava assistindo à missa (segundo o missal novo) na Basílica de São Pedro, com canto gregoriano, e no domingo seguinte estava me deparando com um padre sem casula e uma legião de ministros extraordinários da comunhão. É óbvio que uma paróquia de bairro não tem os mesmos recursos da maior igreja católica do planeta, mas qualquer padre pode (mais que isso, deve) celebrar corretamente, seguindo todas as rubricas do missal, de forma digna e solene.
Resumindo: meu conselho é que vocês não fiquem apenas nesse meu comentário e leiam a entrevista toda. Há muito mais lá, inclusive um papa que tem a humildade de dizer muitas vezes “ainda não sei como vou lidar com isso”. Elise Ann Allen e Leão XIV falam de vários outros temas; o papa faz muitas observações interessantes – como ao lembrar que há padres cujas vidas foram destruídas por acusações falsas de abuso, algo pelo que passou o cardeal George Pell, por exemplo –, diz que não pretende se envolver na política interna norte-americana, afirma que está estudando a situação da China. Em um outro comentário, John Allen Jr. disse que talvez a cautela não seja algo temporário, uma fachada que o papa estaria usando apenas para tomar pé da situação e depois revelar o “verdadeiro” Leão XIV; que talvez Robert Prevost seja isso aí mesmo, alguém discreto e que levará essa característica para todo o seu pontificado, especialmente considerando que uma de suas missões, como diz Elise Ann, é baixar a temperatura e restabelecer pontes. Se for assim mesmo, a entrevista é uma oportunidade ímpar de conhecer melhor o que está na mente do novo pontífice.
Meu encontro com Leão XIV

O leitor percebeu que, em um certo momento, disse ter assistido à missa dominical na Basílica de São Pedro. De fato: durante minhas férias, passei uma semana em Roma, participando do XII Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, e tive uma oportunidade que seria melhor chamar de bênção: pude saudar o papa Leão XIV após a audiência geral de 10 de setembro. Nem a chuva espantou as dezenas de milhares de pessoas que foram à Praça de São Pedro, às quais o papa agradeceu por seu “testemunho” – normalmente, em caso de mau tempo, as audiências são feitas na Sala Paulo VI, mas desta vez haviam sido distribuídos tantos convites (mais de 30 mil, disse-me um padre que trabalha na Secretaria de Estado) que não caberiam todos nem na sala de audiências, nem na Basílica de São Pedro, aonde o papa vai para uma breve saudação nesses casos, depois que a audiência termina. A cidade ainda estava lotada de peregrinos, um rescaldo da canonização de Carlo Acutis e Pier Giorgio Frassati, ocorrida no domingo anterior.
Encerrada a audiência, na qual o papa refletiu sobre o grito de Jesus na cruz, lá fomos nós para o chamado “baciamano” (“beija-mão”). O papa recebe a todos com um sorriso, e fala pouquíssimo; ele está lá para nos escutar, saber quem somos, o que fazemos, ouvir o que quer que tenhamos para dizer a ele. Beijei seu anel, contei-lhe que era jornalista, que estivera em Roma cobrindo o conclave, mas que desta vez havia viajado para um congresso de ciência e fé, e agradeci-lhe pela mensagem enviada aos participantes do evento; disse-lhe que no Brasil tínhamos uma comunidade pequena, mas ativa, dedicada ao diálogo entre e ciência e religião, com muitos não católicos, e que mesmo eles ficaram felizes em maio, ao ver que agora tínhamos um papa matemático (foi quando ele sorriu um pouco mais); mostrei-lhe uma foto da minha família e o presenteei com meu livro de entrevistas. Tudo foi registrado pelos fotógrafos do Vaticano, mas as imagens (que podem ser adquiridas depois) são para uso apenas pessoal e o Vaticano insiste muito nisso, e por isso não há nenhuma aqui nesta coluna.
O meu encontro com Leão XIV deve ter durado coisa de dois minutos; estava tão absorvido no momento que não contei. Claro que, mesmo tendo passado horas e horas, antes da audiência, pensando no que falaria, não muito depois de ver o papa me vieram à cabeça muitas outras coisas que eu poderia ter dito... mas tem o nervosismo, tem o medo de estar “alugando” o papa além da conta, enfim, não vou ficar remoendo o que não aconteceu a ponto de deixar de me alegrar pelo que aconteceu. Poucas horas depois de eu ter me encontrado com Leão XIV, um amigo que entende das coisas me enviou uma mensagem direta e profunda: “agradeça, agradeça, agradeça”. É o que eu tenho tentado fazer desde então.








