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O frei Gilson está alugando não só um apartamento, mas um condomínio inteiro na cabeça de muita gente. O frade carmelita que acaba de bater a marca de 1 milhão de pessoas rezando o rosário com ele às 4 da madrugada está sob ataque cerrado: de um lado, jornalistas de quinto escalão e subcelebridades; de outro, os sommeliers de devoção que continuam achando absurdo o fato de alguém, por livre e espontânea vontade, se levantar da cama em determinado horário para rezar.
“Bolsonarista”, “extrema direita”, “vinculado ao Brasil Paralelo”, “orou pela turma do golpe” e coisas do tipo começaram a pipocar pela internet durante a campanha de cancelamento. Surgiram cortes de uma live supostamente feita em 2022 (não consegui achar o original, só esses cortes recém-publicados) em que frei Gilson, junto com outro carmelita, rezam para livrar o Brasil “do flagelo do comunismo”. Bom, não estavam fazendo mais que aquilo que Nossa Senhora pediu em Fátima, não é mesmo?
Ressuscitaram inclusive a menção ao frade no inquérito da Polícia Federal que pediu o indiciamento de Jair Bolsonaro e dezenas de outras pessoas, incluindo o padre José Eduardo, de quem já tratamos aqui na coluna. Frei Gilson tinha sido o destinatário de uma mensagem enviada pelo sacerdote com o nome de um punhado de generais e um pedido de oração – e só, embora para os militantes já fosse o suficiente para a condenação sumária. Fato é que a PF nem sequer tinha pedido o indiciamento de frei Gilson, como havia pedido o do padre José Eduardo; e a Procuradoria-Geral da República, para minha imensa surpresa, recusou esse pedido e não denunciou o padre da diocese de Osasco por entender que não havia elementos que o incriminassem. Isso, é claro, não impediu um colunista picareta de se referir ao padre José Eduardo como “padre indiciado pela PF” na manchete de um texto nesta segunda-feira.
Os sommeliers de devoção até baixaram um pouco o tom diante do fenômeno avassalador que atrai centenas de milhares de católicos; agora, preferem a indireta e a ironia
É que foi o padre José Eduardo quem cantou uma outra bola sobre o cancelamento de frei Gilson: um outro vídeo em que o frade critica aquela vertente do feminismo que coloca a mulher como adversária do homem. Assim como no caso da live de 2022, não achei a pregação na íntegra, apenas os cortes feitos sob medida para reforçar a “denúncia”.
“Fora de contexto, o texto soa mal”, diz o padre José Eduardo, e soa mesmo. Assim como fora de contexto também soa mal Efésios 5,22, ignorando que São Paulo dá um comando ainda mais drástico aos maridos, que devem se sacrificar pelas esposas como Cristo se entregou pela Igreja – dessa parte ninguém lembra, porque estraga a narrativa do “São Paulo machista”, mas é exatamente a parte que minha esposa e eu fazemos questão de lembrar quando estamos dando curso de noivos...
A coisa é tão, mas tão escancarada que mesmo os esquerdistas que estão tentando frear os anticatólicos mais pilhados admitem que só estão querendo botar panos quentes por razões estratégicas, e não porque de repente descobriram que intolerância religiosa é errado. O rachadista confesso André Janones, por exemplo, criticou o cancelamento do frade porque aliena o eleitor católico que vota(va) no Lula, mas reza com o frei Gilson. Não é questão de respeito pela religião dos outros, é só estratégia para não perder voto.
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Do outro lado, dos sommeliers de devoção, sigo na base do rir pra não chorar. Até baixaram um pouco o tom diante do fenômeno avassalador, e agora preferem a indireta e a ironia. Dizem, por exemplo, que “quem quer rezar às 4 horas, que reze”, mas fazem o “alerta” sobre acordar de madrugada para rezar e passar o dia atormentando os outros por ter dormido mal. Eu sei lá de onde tiraram essa ideia, mas na pior das hipóteses é a tal da “evidência anedótica” que não serve nem de longe para desqualificar o trabalho do frei Gilson.
Que o frei Gilson apanhe por ter a noção correta das dimensões sociopolíticas da fé católica é compreensível – inclusive, que apanhe de gente da Igreja que tem a noção totalmente torta a respeito dessas dimensões sociopolíticas, portando-se como os famosos “coroinhas de Lula”. Que apanhe de gente da Igreja por promover uma devoção, sem obrigar ninguém a segui-la, sem insinuar que o “seu” jeito de rezar é o único aceitável, ou o melhor entre todos os outros, isso pra mim já é mais bizarro. Mas ao menos só mostra o quanto a oração realmente incomoda. Na homilia da missa a que assisti, no domingo, o padre lembrou que a etimologia de “diabo” tem a ver com divisão (isso muito padre deve ter dito), e que mesmo dentro da Igreja há muitos “diabolos”. Dá para perceber, mesmo.
Umas palavrinhas sobre a penitência quaresmal
Tem gente querendo botar nos ombros dos fiéis uma carga que a Igreja não coloca, então vamos deixar algumas coisas em pratos limpos. A nossa obrigação é a da abstinência de carne às sextas-feiras, de acordo com o cânone 1251 do Código de Direito Canônico – no Brasil, a CNBB, com autorização da Santa Sé, permitiu a substituição por outro tipo de penitência, como abster-se de outro tipo de alimento ou realizar alguma obra de piedade. Seja lá qual for a penitência que você escolha, estendê-la para toda a Quaresma, e não apenas para as sextas-feiras, é recomendável, mas não é obrigatório, por mais que o cânone 1250 liste a Quaresma toda como “tempo de penitência”.
(Aliás, o cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova York, apanhou muito por dizer que o jejum dos muçulmanos no Ramadã deveria nos deixar envergonhados. Pois eu acho que o cardeal acertou em cheio, já que os muçulmanos levam isso muito mais a sério que a maioria dos católicos. Lembro que, no intervalo daquele horrendo Irã x Nigéria na Copa de 2014, fui ajudar um torcedor iraniano a pedir alguma coisa para comer, e ele me contou algo sobre não poder tomar nada antes do pôr-do-sol caso a seleção dele avançasse na Copa, pois o Ramadã ia começar em alguns dias.)
Não ache que você está dispensado de trocar o churrasco por peixe ou ovo às sextas só porque não está falando mal dos outros na internet
Agora, tem duas conversas nas quais não podemos cair. A primeira é a história de “substitua o jejum de comida por jejum de fofoca” ou coisa parecida – esse aparece muito nas mídias sociais, inclusive com frases atribuídas ao papa Francisco, que logo haverá de superar o Arnaldo Jabor e a Clarice Lispector nesse quesito. Abster-se de fazer coisa errada é obrigação do cristão 24 horas por dia, 7 dias por semana, o ano todo. Isso não é penitência; penitência é você abrir mão de algo lícito por amor a Deus. Então, não ache que você está dispensado de trocar o churrasco por peixe ou ovo às sextas só porque não está falando mal dos outros na internet, certo?
A segunda conversa nem sei como surgiu, mas circula em muita paróquia por aí: a de que você precisa ficar contando o quanto economizou ao deixar de comer o alimento tal, pegar essa grana e botar tudo na coleta do Domingo de Ramos, porque é a “dimensão social” da sua penitência. Bom, se alguém lhe disser que sua penitência terá menos valor se você não anotar tudo anotadinho e botar cada centavinho economizado na caixinha, fuja que é cilada! O objetivo da abstinência é que nos unamos com o Cristo sofredor na cruz, e isso independe do que fazemos com o dinheiro não gasto. Aqui vale a mesma história da abstinência realizada ao longo de todos os dias da Quaresma: entregar à Igreja a quantia eventualmente economizada – o que nem sempre acontece, pois o alimento “substituto” tem seu custo, ou o dinheiro vai para outras necessidades da família – é meritório (até porque a esmola faz parte do tripé clássico da Quaresma, oração-esmola-jejum), mas não é obrigatório.
Por fim, seja lá qual for a penitência de sua escolha, siga o conselho de Jesus no evangelho da Quarta-Feira de Cinzas, falando do equivalente fariseu da “sinalização de virtude” moderna: não fique ostentando por aí. Não há nenhum cânone proibindo você de botar no Instagram seu prato de tilápia, omelete ou macarrão ao sugo na sexta-feira, mas é como Jesus diz: fazendo isso, a sua recompensa você já ganhou.








