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O papa Francisco chega em cadeira de rodas para missa na Basílica de São Pedro, em 5 de junho de 2022.
O papa Francisco chega em cadeira de rodas para missa na Basílica de São Pedro, em 5 de junho de 2022.| Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA

Faz pouco mais de um mês, começou a boataria. O papa Francisco apareceu em cadeira de rodas, da qual ele não se desfez mais, usando-a em quase todos os seus compromissos públicos (raramente ele aparece usando uma daquelas bengalas com vários pés). Em ocasiões importantes do calendário litúrgico, como a recente festa de Pentecostes, Francisco fez a homilia, mas não celebrou a missa.

E aí o falatório sobre a saúde do papa se intensificou. Roma é cheia de tiradas de sabedoria popular a respeito dos pontífices, como “no conclave, quem entra papa sai cardeal”, ou “depois de um papa gordo vem um papa magro”, ou ainda “o papa está sempre bem, até que esteja morto”. São mais gracejos que verdades: muitos conclaves elegem os favoritos, nem sempre um papa é sucedido por alguém de personalidade ou convicções opostas, e João Paulo II é o melhor exemplo recente de que o Vaticano tem tratado com mais transparência a saúde dos papas. Então, vamos aos fatos.

O problema de Francisco é mais de mobilidade que de algo que efetivamente lhe traga risco de vida. O papa tem o ligamento cruzado anterior de um dos joelhos rompido. Não sei se o leitor já passou por isso; eu rompi o LCA do joelho direito em 2017 e tinha receio até de descer as escadas de casa com o filho de 1 ano no colo, pois sempre parecia que ia me faltar a sustentação e eu rolaria com ele escada abaixo. Philip Rivers – provavelmente o quarterback mais católico da história da NFL – jogou uma final de conferência com um LCA rompido em 2008, mas ele era um atleta de 26 anos; estamos falando de um octogenário que, ainda por cima, sofre de ciática. Em 2021, o papa foi operado por causa de uma estenose diverticular séria no cólon e teve parte do órgão removido, mas até onde se sabe o problema está resolvido.

O próprio papa já descartou uma cirurgia para, por exemplo, reconstruir o ligamento. No fim de maio, ele contou a bispos italianos que a anestesia geral para a cirurgia no cólon causou uma série de efeitos colaterais bem desagradáveis que ele não gostaria de reviver. Então, a não ser que outros procedimentos, como infiltrações, e as sessões diárias de reabilitação deem um bom resultado, Francisco pode acabar mesmo preso à cadeira de rodas. E aí surge outra possibilidade, a da renúncia – até porque Francisco disse aos bispos que “renuncio antes que me operem”.

Para alimentar esses rumores, há o consistório convocado para agosto, mês em que esses eventos não costumam acontecer (agosto é o mês por excelência de férias na Itália toda). E, mais recentemente, houve o anúncio de que Francisco visitará L’Aquila, a cidade onde está enterrado São Celestino V, papa que renunciou com apenas cinco meses à frente da Igreja. E aí todos os comentaristas vaticanos se lembraram de quando Bento XVI deixou seu pálio sobre a urna onde repousa o corpo do papa, em 2009, quatro anos antes de renunciar. Mas as associações só começaram a ser feitas depois que Bento XVI deixou o pontificado, e até onde eu sei o papa emérito jamais confirmou que seu gesto em L’Aquila fosse um “sinal” do que estaria por vir.

Para os roteiristas da renúncia, o que vai acontecer? Francisco realiza o consistório, botando ainda mais “franciscanos”, “francisquistas”, chamem como quiserem, no Colégio Cardinalício; vai no dia seguinte para L’Aquila venerar o corpo de São Celestino V e segue os passos desse seu predecessor, anunciando que está de saída; por fim, no conclave, os cardeais escolhem alguém bastante alinhado com Francisco. Mas eu particularmente acho o roteiro bem improvável, e explico por quê.

Duvido muito que Francisco renuncie enquanto Bento XVI estiver vivo. Se “dois papas” já causam confusão suficiente, imagine três

A afirmação aos bispos italianos é o de menos: ela foi feita em tom de brincadeira, como quando ele disse aos bispos mexicanos que o remédio que o faria melhorar mesmo seria tequila. O consistório tem um segundo objetivo, além da nomeação de novos cardeais, que é refletir sobre a reforma da Cúria Romana, já em vigor; esperar até novembro para essa discussão seria demais. Além disso, Francisco já tem uma viagem confirmada ao Cazaquistão em setembro; e sua ida a L’Aquila é motivada pela celebração do Perdão Celestino, instituído por aquele papa em 1294 e um precursor do jubileu celebrado a cada 25 anos pela Igreja Católica: nos dias 28 e 29 de agosto, é concedida indulgência plenária a quem se confessar, comungar e cruzar a Porta Santa da Basílica de Santa Maria de Collemaggio. Como disse John Allen Jr., é um “festival da misericórdia”, tema muito caro ao papa.

E, por fim, há um motivo ainda mais relevante: Bento XVI. Duvido muito que Francisco renuncie enquanto Joseph Ratzinger estiver vivo. Se “dois papas” já causam confusão suficiente, com direito a teorias da conspiração, filmes toscos e católicos “preferindo” um papa a outro, imagine três. Francisco sabe muito bem disso, e não creio que ele deseje agravar a situação. Especialmente porque o papel do papa emérito, convenhamos, não ficou muito bem definido depois da saída de Bento XVI. Essa discussão precisaria ser feita com calma, de preferência antes que haja outra renúncia.

O barrete não é o problema

A catolicosfera mais conservadora repercutiu muito uma fala de Francisco aos bispos da Sicília, em 9 de junho:

“A liturgia, como vai? (...) Como [os padres] celebram? Não vou à missa lá, mas vi as fotografias. Falo claramente. Caríssimos, ainda as rendas, os barretes... mas onde é que estamos? Sessenta anos depois do Concílio! Um pouco de atualização também na arte litúrgica, na ‘moda’ litúrgica! Sim, de vez em quando usar a renda da vovó tudo bem, mas de vez em quando. É para agradar a vovó, certo? (...) É bonito homenagear a vovó, mas é melhor celebrar a mãe, a Santa Madre Igreja, da forma como ela quer ser celebrada.”

Bom, se eu estiver errado e Francisco renunciar em agosto, esse é o tipo de afirmação que não vai me deixar saudades. “Sessenta anos depois do Concílio” deve ser a versão católica do “em pleno século 21”. Assim como Francisco, eu também não vou à missa lá na Sicília, então não sei se por ali existe algum problema mais sério de apego a vestes litúrgicas mais elaboradas por mera ostentação, para exibir ortodoxia (real ou fingida) ou sei lá eu. Mas, se é este o caso, o papa precisaria explicar melhor, até porque ele sabe que tudo o que diz acaba pelo menos publicado no site do Vaticano, e por isso fica acessível a um universo de fiéis que não estão por dentro do contexto particular da Sicília. E o Concílio Vaticano II não aboliu nem desautorizou veste nenhuma – aliás, muita gente ficaria surpresa ao ver o que os padres conciliares defenderam na Sacrosanctum Concilium, como o uso do latim, ao menos em algumas partes da missa (SC 36 e 54), o canto gregoriano (SC 116) e o órgão (SC 120).

Pois, no fim das contas, o problema não é o barrete nem os detalhes rendados das alvas e sobrepelizes, é a atitude de quem os usa ou deixa de usar. Com essa fala, o papa acaba botando no mesmo saco (ainda que não tenha feito isso de caso pensado) os padres exibicionistas e os padres que simplesmente querem usar uma veste mais trabalhada por motivos muito legítimos (inclusive a ideia de que no culto divino se deve usar o que houver de mais belo). E dá munição para esses últimos serem atacados mundo afora por sacerdotes que desprezam a obediência a tudo que a Igreja pede em termos de liturgia, preferindo até mesmo se disfarçar de leigos – e eu sinceramente considero esses últimos um problema muito mais sério que um padre que usa barrete para se exibir.

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