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O padre Françoá Costa está longe de ser um Frei Gilson em termos de popularidade, mas ainda assim é uma figura influente, especialmente entre os católicos de orientação mais conservadora ou tradicionalista: ele tem quase 130 mil seguidores no Instagram e oferece um curso de teologia. Por isso, a notícia de que ele está se juntando à Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), fundada em 1970 pelo arcebispo Marcel Lefebvre, está repercutindo bastante entre esse meio. Eu não conheço o padre, mas vi essa mudança com muita preocupação, e analiso dois textos dele sobre essa mudança, e que chegaram ao meu conhecimento. Um deles é uma carta aos demais padres da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz; outro, uma mensagem endereçada a “membros da Associação Cultural Santo Atanásio”.
A Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, resumindo muito resumidamente, é uma espécie de “seção de padres” do Opus Dei, que inclui todos os sacerdotes pertencentes à prelazia, mas também aceita como membros padres diocesanos que se identificam com a espiritualidade de São Josemaría Escrivá – era o caso do padre Françoá, que na carta afirma que está pedindo seu desligamento. A primeira pergunta é: se temos Instituto Bom Pastor, Fraternidade de São Pedro, Instituto Cristo Rei, a Administração Apostólica São João Maria Vianney, todos em perfeita comunhão com a Igreja, sem falar de dioceses onde há bispos que veem com bons olhos a missa tridentina, por que o padre Françoá escolheu a FSSPX, que está em situação canônica irregular? Ele justificou assim sua escolha:
“Não quero fazer este retorno incondicional à Fé católica e à sua expressão orante simplesmente controlado pela hierarquia atual que, quiçá, me concederia rezar a Missa tradicional, ou entrando em um dos institutos anteriormente chamados ‘Ecclesia Dei’, porque, nestes casos, e no cenário atual, isso significaria que eu aceitaria que a Missa tradicional é apenas uma forma extraordinária do Rito Romano a modo de privilégio para mim ou para o meu grupo, quando na verdade o que desejamos é que tudo seja restaurado em Cristo.”
A afirmação de que não é possível “salvar os erros” da liturgia atual celebrando-a de acordo com as rubricas é bastante problemática, pois implica que a Igreja promulgou um rito prejudicial à fé
Na carta aos membros da Associação Cultural Santo Atanásio, ele aprofunda suas críticas ao missal de 1969:
“A liturgia nova, construída em consequência do mesmo Concílio [Vaticano II], encontra-se enferma, com vários erros que nós, na FSSPX, pensamos que não dá simplesmente para salvar, celebrando Missas novas com certa piedade e bom gosto. De fato, a Missa nova, entre outras coisas, foi feita sob a vistoria de seis protestantes, suprime o ofertório, retalha o Cânon, introduz novas orações eucarísticas, não deixa clara a essência sacrificial da Missa.”
Deixando de lado aqui qualquer comparação entre o missal pré-conciliar e o novo, essa afirmação de que não é possível “salvar os erros” da liturgia atual celebrando-a de acordo com as rubricas é bastante problemática, pois implica que a Igreja, com a autoridade que lhe foi dada por Deus, promulgou um rito prejudicial à fé. Isso bate totalmente de frente com a promessa divina de acompanhar a Igreja e não deixá-la cair no erro. Esse é o começo do caminho que termina com a pessoa afirmando que o missal de São Paulo VI é inválido, herético ou coisa do tipo, e incentivando os fiéis a simplesmente ficarem em casa se não conseguirem missa tridentina por perto. Rezo para que o padre Françoá não trilhe essa rota, mas, que a FSSPX é um ambiente onde esse tipo de coisa floresce com facilidade sem ser podada – como provavelmente seria em uma diocese com um bom bispo (e o padre Françoá estava em uma diocese com um bispo excelente), ou nas instituições ligadas à missa tridentina com aprovação pontifícia –, isso é.
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Os sacramentos celebrados pelos padres da FSSPX são válidos? São; a validade significa que, se um padre consagra a hóstia, ela realmente se torna o Corpo de Cristo; se um bispo da SSPX ordena um padre, ele de fato recebe o poder sacerdotal etc. Já a licitude é outra conversa. Até onde sei, as confissões são os únicos sacramentos que os padres lefebvristas podem oferecer válida e licitamente em todo o mundo, por concessão do papa Francisco desde 2015; de resto, os sacerdotes da FSSPX continuam suspensos a divinis e, no máximo, podem receber do bispo local a permissão para assistir o casamento de dois católicos que são espiritualmente acompanhados pela fraternidade. Isso tem sido parte do esforço da Igreja para trazer de volta para casa o filho rebelde, esforço iniciado assim que Lefebvre e o brasileiro Antônio de Castro Mayer ordenaram quatro bispos sem a devida autorização do papa João Paulo II, em 1988. O ato de desobediência resultou na excomunhão dos seis bispos; em 2009, Bento XVI levantou a punição para os quatro ordenados (Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta), pois Lefebvre e Castro Mayer já haviam falecido, e os efeitos da excomunhão cessam com a morte – daí em diante, é com a justiça e a misericórdia divinas.
Acontece que a mão estendida oferecida pelos sucessivos papas não foi retribuída como se deve pela FSSPX, que continua colocando empecilhos a uma reconciliação completa e permanece irregular do ponto de vista canônico. E as coisas podem piorar em breve, pois, dos cinco bispos que a FSSPX tinha em 1988 (Lefebvre e os quatro ordenados por ele), sobraram apenas o suíço Fellay e o argentino De Galarreta; os boatos sobre novas ordenações estão fortes, e são alimentados pelos próprios superiores da FSSPX. Ordenar novos bispos sem autorização do papa seria regredir a 1988 e colocar a perder tudo o que foi conseguido desde então. É nisso que o padre Françoá Costa está se metendo.
Já disse aqui na coluna que considero Traditionis custodes um grande equívoco de Francisco. Eu prefiro a abordagem de Bento XVI, para quem uma expansão da missa tridentina levaria, primeiro, a termos missas mais reverentes segundo o missal novo; e, segundo, a um possível aperfeiçoamento do missal novo trazendo de volta elementos que a reforma litúrgica de 1969 suprimiu. Reconheço que, hoje, não é nada fácil ser um tradicionalista, mas isso não justifica – especialmente para um sacerdote – abraçar a rebeldia, especialmente quando há diversas outras possibilidades que estão dentro da barca de Pedro. Casos como este só mostram que temos de rezar ainda mais pela unidade da Igreja.








