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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Liturgia

Os paramentos do papa e os sinais sagrados

paramentos do papa
Leão XIV apareceu para os fiéis, após sua eleição, trajando os paramentos papais completos. (Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA)

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Ao menos desde 2013, os inícios de pontificado são marcados pelas comparações sem fim entre o papa novo e o papa antigo – principalmente com o objetivo de marcar posições do tipo “papa X bom, papa Y ruim”. Aconteceu com Francisco em relação a Bento XVI, e já começou a acontecer com Leão XIV em comparação com Francisco. Uma famosa correspondente em Roma comentou a primeiríssima aparição do novo pontífice na sacada da Basílica de São Pedro com essas palavras: “o novo papa aceitou os paramentos tradicionais, como fez Bento XVI. Também exibiu uma cruz de ouro, e nesse sentido, com esses símbolos, o seu pontificado pode não ser como o do seu antecessor”.

Se por um lado é um enorme exercício de futurologia tentar adivinhar como será todo um pontificado por causa da roupa que o papa usa ou deixa de usar, por outro lado a correspondente está certa em destacar o uso de todos os paramentos papais por Leão XIV – mas não pelos motivos que ela imagina, e sim porque na Igreja Católica os sinais realmente importam. “Um papado não é feito de símbolos. O papado é um símbolo. Eu não preciso recordar a história do papado para ilustrar isso, basta recordar a cena em Cesareia de Filipe, em que Jesus diz a Pedro ‘eu te darei as chaves do Reino dos Céus’. O papado é o sinal do pastoreio de Cristo sobre os homens”, diz o padre Luís Fernando Alves Ferreira, da diocese de Itumbiara (GO), que faz mestrado em Liturgia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.

“We salute the rank, not the man”

Isso não tem nada a ver com mais ou menos humildade. Antes de ir a Roma para cobrir o conclave, eu conversei sobre isso no Última Análise com o Deltan Dallagnol, que recordou o fato de Francisco ter aparecido para os fiéis na Basílica de São Pedro apenas com a batina branca após sua eleição. Eu alertei que, caso o próximo papa resolvesse usar os paramentos completos (como Leão XIV usou), voltar a viver no Palácio Apostólico (como Leão XIV fez), ou deixasse as pessoas lhe beijarem o anel (como Leão XIV aparenta deixar, a julgar por alguns vídeos que já vi), não deveríamos partir para comparações, como se ele fosse menos humilde que Francisco.

“O papado é um símbolo em si mesmo, e ao longo dos séculos alguns sinais externos lhe foram acrescentados para melhor ilustrar isto de acordo com cada época.”

Padre Luís Fernando Alves Ferreira, mestrando em Liturgia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma

Francisco era um jesuíta, e dos jesuítas se diz que nec rubricat, nec cantat – o nec rubricat, no caso, indicava que zelo litúrgico estava muito longe de ser uma prioridade para os membros da Companhia de Jesus. Daí a simplicidade que ele adotou na forma de se vestir. Leão XIV parece ter uma compreensão diferente. Não sei se ele já viu Band of Brothers, mas eu vi e acho que uma cena emblemática se aplica muito bem ao nosso assunto. No fim da guerra, o capitão Sobel passa pelo major Winters e não lhe presta continência (Winters, ainda tenente, tinha sido treinado por Sobel, que nunca pegou leve com o então subordinado). Winters o chama e diz “we salute the rank, not the man” (“nós saudamos o posto, não o homem”).

É irrelevante se gostamos ou não do papa; nós beijamos seu anel, e lhe damos o devido respeito de várias outras formas, porque ele é o papa. We salute the rank, not the man. E, da parte do papa, faz bem a ele saber que tudo o que está sendo posto à sua disposição está ali não por ele ser Jorge Mario Bergoglio ou Robert Francis Prevost, mas porque ele é o papa. Nada daquilo é dele, é do cargo. E o cargo tem suas particularidades. “Desde muito cedo na história o ministério papal foi marcado por distinções em relação aos demais clérigos. Uma cor exclusivamente sua, como foi o vermelho ao longo de séculos – e, hoje, o branco. O camauro para o inverno de Roma, ou a mozetta vermelha sobre sobrepeliz branca. Tudo isto para dizer que o papado é um símbolo em si mesmo, e ao longo dos séculos alguns sinais externos lhe foram acrescentados para melhor ilustrar isto de acordo com cada época. Alguns foram retirados de uso, como quando São Paulo VI depôs os flabelos, a sédia gestatória e a tiara papal”, conta o padre Luís Fernando.

Os sinais apontam para algo mais importante

E por que isso importa? “Precisamos destes sinais unidos ao símbolo porque eles expressam a fé da Igreja no ministério daquele que ocupa a Sé de Pedro. Uma vez que a fé se expressa também por meio de sinais humanos, o papa endossa alguns sinais da fé da Igreja. O vermelho do testemunho até o martírio, a cruz de Pedro no seguimento de Jesus, o branco pascal da espera escatológica da Igreja, o anel do serviço, o ouro das realidades celestes, a prata da vida terrena dos homens. O homem que se senta à Sé de Pedro carrega sobre si o símbolo da fé universal dos cristãos”, descreve o sacerdote.

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Hoje mesmo, Leão XIV recebeu representantes das igrejas orientais unidas a Roma, que celebram seu Jubileu. E, a eles, o papa disse essas palavras: “A contribuição que o Oriente cristão pode nos oferecer hoje é enorme! Temos grande necessidade de recuperar o senso de mistério que permanece vivo em suas liturgias, liturgias que envolvem a pessoa humana em sua inteireza, que cantam a beleza da salvação e evocam um senso de admiração diante de como a majestade divina abraça nossa fragilidade humana. (...) É vital, portanto, que vocês preservem suas tradições sem atenuá-las em nome da praticidade ou da conveniência, para que não sejam corrompidas pela mentalidade consumista ou utilitária”.

Leão XIV, pelo jeito, entende o poder dos sinais e sabe que na Igreja nada é supérfluo. “A fé professada e expressa nos símbolos é celebrada na liturgia, lugar da adoração da Igreja, que une fé e símbolos às coisas e pessoas para expressar uma realidade maior, transcendente”, diz o padre Luís Fernando, e isso se aplica também aos sinais exclusivos do papado. “Faz bem saber que existem normas editadas para cada paramento que o papa usa e cada gesto que ele faz. Estão todas previstas em uma série de livros litúrgicos, no Código de Direito Canônico, no Missal Romano e na Liturgia das Horas. Bento XVI disse que o papa é um servidor da Igreja, e suas escolhas pessoais muitas vezes não contam ou contam menos. O personalismo tem pouco espaço”, acrescenta o sacerdote.

Isso me lembrou o que o cardeal Re disse na homilia da missa Pro eligendo pontifice, sobre o amor que Deus pede e que consiste, também, em “dar a vida”. Hoje é improvável que um papa seja chamado a derramar o próprio sangue pelo Evangelho, mas certamente será chamado a sacrificar as preferências, gostos e até convicções pessoais em nome do posto que ocupa. “No fim, ele será sempre o servus servorum Dei, o servo dos servos de Deus em quem a fé da Igreja se expressa e é confirmada: ‘e tu, quando tiveres voltado a mim, confirma os teus irmãos’, disse Jesus a Pedro. E, de fato, nos sentimos todos confirmados naquele ‘a paz esteja com todos vós’ que, da Praça de São Pedro, ressoou pelo mundo inteiro no dia 8”, encerra o padre Luís Fernando.

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