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Uma semana atrás, para minha enorme surpresa, o National Catholic Reporter (sim, o Reporter, o veículo de mídia católico favorito dos ditos “liberais”!) publicou um texto de opinião escrito por Roxie Beckles, influenciadora digital que usa nas redes o apelido de “That Black Catholic Chick”, defendendo a missa tridentina e rompendo com o estereótipo que foi criado em torno das pessoas que preferem a liturgia na “Forma Extraordinária do Rito Romano”, como Bento XVI a chamou. É a “geração Z” que está por trás da crescente popularidade da missa tridentina; essa juventude, segundo ela, “não está buscando novidade, está buscando reverência. Eles [os jovens] não querem entretenimento ou teologia aguada; estão procurando transcendência, algo que rompa o ruído da vida moderna e os coloque face a face com o sagrado”. E ela diz por experiência própria, ao ver quais dos seus conteúdos geram mais engajamento e ao participar do Jubileu dos Missionários Digitais, em Roma, no fim de julho.
Continuo citando Beckles, porque vale a pena. Ela afirma que não se trata nem de extremismo, nem de um retorno ao passado, mas de uma busca por estabilidade. “O desejo pela tradição não tem a ver com ideologia, mas com identidade. É sobre sentir-se enraizado em algo eterno quando o mundo continua a mudar sob nossos pés”, afirma a influenciadora, acrescentando que a missa tridentina “continua atraindo jovens católicos especialmente porque se recusa a abrir mão dos sinais do sagrado. O uso do latim, o incenso, o canto, o silêncio sagrado e tudo o mais não são frívolos ou antiquados. Eles envolvem a pessoa inteira – corpo, mente e alma – em um ato de adoração que nos eleva para fora de nós mesmos e para a presença de Deus”. Os jovens, ela diz, querem “uma liturgia que reflita o peso e a glória daquilo que professamos”, querem beleza, querem “ser envoltos no mistério”. E ela termina dizendo que “temos de parar de fingir que a reverência pertence ao passado quando, na verdade, ela é uma das poucas coisas que continuam atraindo os jovens [para a Igreja]”.
O papa Leão XIV já demonstrou ter uma percepção parecida. Ele ainda não tinha nem uma semana de pontificado quando, em 14 de maio, discursou aos participantes do Jubileu das Igrejas Orientais, e lhes disse: “Quanta necessidade temos de recuperar o sentido do mistério, tão vivo nas vossas liturgias, que abrangem a pessoa humana na sua totalidade, cantam a beleza da salvação e suscitam o enlevo pela grandeza divina que abraça a pequenez humana! (...) é fundamental valorizar as vossas tradições sem as diluir, talvez por praticidade e comodidade, para que não sejam corrompidas por um espírito consumista e utilitarista”.
O problema de muitos bispos não é com a missa tridentina em si, mas com qualquer elemento que transmita reverência e piedade na liturgia
A importância de uma liturgia bem celebrada, que desperte esse senso de mistério, e as consequências problemáticas da falta de reverência também foram citadas pelo papa na recente entrevista a Elise Ann Allen. Leão XIV comentou o termo “Latin Mass”, pelo qual a missa tridentina é mais conhecida nos países de língua inglesa, e acrescentou: “você pode ter missa em latim atualmente; se for no rito promulgado por Paulo VI, não há problema algum”. E, mais adiante, afirmou que “o dito ‘abuso’ da liturgia no que chamamos de ‘missa do Vaticano II’ não ajudou as pessoas que buscam uma experiência mais profunda de oração, de contato com o mistério da fé, que elas parecem encontrar na celebração da missa tridentina (...) se celebramos corretamente a liturgia do Vaticano II, será que realmente há tanta diferença assim entre uma e outra experiência?”
Bom, que há diferenças, isso há; basta ver o tanto de orações que foram suprimidas ou supersimplificadas (para ficar em apenas dois exemplos, acho que perdemos muito sem as orações ao pé do altar e sem o ofertório do missal de 1962); por outro lado, acho que o Novus Ordo foi muito feliz ao acrescentar mais uma leitura à missa dominical. Mas o que realmente importa nessa declaração de Leão XIV é a afirmação, com a qual concordo totalmente, de que é possível celebrar o rito novo de forma muito reverente e piedosa. O missal novo nunca baniu o latim – pelo contrário, ele continua a ser a língua oficial da liturgia, e o Concílio Vaticano II incentivava seu uso; nunca proibiu o canto gregoriano – outro aspecto incentivado pelo concílio; a missa nova pode inclusive ser celebrada versus Deum (o então cardeal Ratzinger deu ótimos argumentos teológicos e litúrgicos em sua defesa); a norma padrão também na missa nova é receber a comunhão na boca – a permissão para comunhão na mão é uma concessão que fica a critério das conferências episcopais (duvida? Está na instrução Memoriale Domini, de 1969). E mais: celebrar com reverência é algo tremendamente acessível, da paróquia de periferia à catedral diocesana; não depende de recursos financeiros, mas da boa vontade de fazer o que a Igreja pede ou recomenda.
E aí eu pergunto: quão fácil é, hoje, encontrar missas celebradas com reverência por aí? Vou até quebrar um galho: pode ser em português mesmo, versus populum. Não é nada fácil, a não ser para os abençoados que vivem em algum bolsão de correção litúrgica. Isso é triste, e sucessivos papas apontaram esse problema e pediram o respeito às normas litúrgicas. Não um mero respeito pelo respeito, mas porque o povo de Deus tem direito a participar de um culto dignamente celebrado. É por isso que o papa Francisco, em Desiderio desideravi, escreveu que “todos os aspetos do celebrar devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música…) e todas as rubricas devem ser observadas: bastaria esta atenção para evitar subtrair à assembleia aquilo que lhe é devido, isto é, o mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece”.
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Agora, vamos imaginar um bispo hipotético que, depois de Traditionis custodes, estivesse de fato convencido de que só pode haver uma forma do Rito Romano, que é o missal novo (o de São Paulo VI, revisado em 2002 por São João Paulo II), e que para isso seria preciso acabar com qualquer missa tridentina em sua diocese, ou pelo menos restringi-la ao máximo. Não faria sentido que esse bispo, com genuína solicitude pastoral pelos fiéis afetados por essa decisão, promovesse então a celebração da missa nova com o máximo possível de reverência, até mesmo preservando algumas características da missa tridentina que também podem ser aplicadas ao missal novo? Latim ao menos em algumas partes, canto gregoriano, versus Deum (lembrando que no versus Deum o padre está “voltado para Deus” quando se dirige a Deus, mas fica de frente para os fiéis quando se dirige a eles), comunhão de joelhos e na boca...
Faria todo o sentido, mas não é o que tem acontecido. As notícias que nos chegam com frequência de dioceses mundo afora dizem que a supressão da missa tridentina sempre vem acompanhada por regras absurdas sobre a celebração da missa nova. Menos de 48 horas depois de Traditionis custodes ser publicado, em 2021, um bispo de Porto Rico proibiu seus padres de usarem a casula romana! De lá para cá, já vimos bispos proibindo comungar ajoelhado e criticando a comunhão na boca, proibindo a celebração versus Deum, e por aí vai. Tudo isso, aliás, desafiando frontalmente o Vaticano, que nunca deu autorização nem às conferências episcopais, nem aos bispos individualmente, para proibir maneiras de receber a eucaristia, o uso de qualquer tipo de veste prevista no missal, ou uma determinada orientação do celebrante.
Pelo jeito, o problema desses bispos não é com a missa tridentina em si, mas com qualquer elemento que transmita reverência e piedade na liturgia. E isso é uma tragédia, porque reflete uma visão muito, mas muito distorcida do que é a celebração eucarística. Em vez de ser o momento em que se torna presente o sacrifício da Cruz – como diz o Catecismo (1181) –, a oração mais perfeita, a ocasião em que o Céu encontra a terra, a missa se torna uma simples reunião para rezar junto, se torna... entretenimento, para recordar o que disse Roxie Beckles. E, depois de terem retirado da liturgia todo e qualquer sinal de que estamos diante de algo de grandeza indescritível, esses mesmos bispos ainda hão de perguntar (se é que eles realmente se preocuparão com isso) por que as pessoas acreditam cada vez menos na Presença Real de Cristo na Eucaristia...





