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Uma pesquisa recentíssima sobre o clero norte-americano, realizada pelo instituto Gallup sob orientação de pesquisadores da Universidade Católica da América, trouxe dados muito interessantes, dos quais talvez o mais importante seja o de que os padres ordenados mais recentemente têm tendência maior a manifestar uma fé mais ortodoxa e a se preocupar menos com questões identitárias, em comparação com seus colegas ordenados há mais tempo.
Não é uma pesquisa inédita; ela vem sendo realizada já há alguns anos, e fazer a maioria das análises com o recorte pela data de ordenação, e não pela idade do sacerdote, me pareceu uma decisão bastante acertada – o que me lembra um pouco de quando fiz o Encontro de Casais com Cristo, e os grupos formados levavam em consideração o tempo de casamento, e não pela idade, pois os desafios de recém-casados eram diferentes daqueles com muito tempo de matrimônio. Da mesma forma, padres ordenados em um determinado período de tempo, independentemente da idade, tiveram formações semelhantes, viveram um “clima” semelhante dentro da Igreja, e por aí vai.
Padres ordenados recentemente são mais conservadores, política e teologicamente
E o que os dados dizem? Que os padres ordenados de 2010 em diante se dizem muito mais “conservadores/ortodoxos teologicamente” ou “muito conservadores/ortodoxos teologicamente” (a soma de ambas as respostas supera os 70%) que seus colegas ordenados antes de 1975: neste grupo, mais de 70% se diziam “teologicamente progressistas” (estou usando a terminologia da pesquisa, o leitor sabe que eu não vejo “progresso” nenhum no que os ditos “progressistas” defendem), proporção que cai para 8% dos que foram ordenados nos últimos 15 anos.
“Ministério entre jovens e jovens adultos”, “formação familiar e preparação para o matrimônio” e “evangelização” devem ser prioridades para 94% dos padres ouvidos
Não entendi por que os pesquisadores não colocaram gráficos detalhados sobre essa pergunta no seu relatório de 28 páginas com as informações que consideram mais importantes. Afinal, em se tratando de padres, parece-me que as preferências teológicas são mais importantes que as políticas, e essas últimas aparecem detalhadas no documento. A tendência é semelhante: os “conservadores” ou “muito conservadores” crescem gradativamente, saindo de 14% entre os ordenados antes de 1975 para 51% entre os ordenados depois de 2010; enquanto isso, os “liberais” ou “muito liberais” – nos EUA o termo “liberal” está mais para “esquerdista” que para o que conhecemos aqui como liberalismo – caíram drasticamente: eram 61% entre os ordenados antes de 1975 (17% se disseram “muito liberais”), e 12% entre os padres ordenados depois de 2010.
Um dado bastante curioso: 61% dos padres entrevistados dizem que seu bispo ou superior (no caso dos religiosos) tem visões teológicas similares – 15% disseram que ele é “um pouco mais progressista”, 3% responderam que é “bem mais progressista”, 16% afirmaram que ele é “um pouco mais conservador” e 5% disseram que ele é “bem mais conservador”. Eu gostaria de ver alguns outros recortes: como esses 61% se distribuem em termos de preferência teológica? Existe um recorte desses dados por data de ordenação sacerdotal e episcopal do bispo? Será possível, por exemplo, que bispos mais “novos” também tenham tendência a ser mais conservadores, e isso esteja influenciando a formação dos novos padres?
As prioridades: jovens, família, casamento e evangelização
Os pesquisadores ofereceram aos padres uma lista com vários itens, pedindo que eles escolhessem todos os que, em sua opinião, deveriam ser prioridades para a Igreja. Três itens tiveram concordância avassaladora: “ministério entre jovens e jovens adultos”, “formação familiar e preparação para o matrimônio” e “evangelização” devem ser prioridades para 94% dos padres ouvidos. Depois vieram “pobreza/sem-teto/insegurança alimentar” (88%) e questões sobre início e fim da vida, como aborto e eutanásia (87%).
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Na outra ponta, “mudanças climáticas” deveriam ser prioridade da Igreja para 54% dos padres; “sinodalidade”, para 50%; “comunidade LGBT”, para 48%; e “acesso à missa tridentina”, para apenas 26%. Tenho visto algumas análises destacando o fato de que, quanto mais recentemente ordenados os padres, mais eles tendem a considerar prioritária a possibilidade de os fiéis poderem assistir à missa tridentina: 39% para os ordenados depois de 2000, contra 20% dos padres ordenados entre 1980 e 1999, e 11% dos padres ordenados antes de 1980. É um bom sinal? Considero que sim. Mas não há como perder de vista o fato de que este foi o item menos escolhido como prioridade, e de que foi o único a ter mais da metade dos entrevistados (59%) para quem ele definitivamente não é prioritário. Outro bom sinal é o crescimento da importância da devoção eucarística entre os padres ordenados mais recentemente: apenas 57% dos que se tornaram sacerdotes antes de 1980 a consideram prioritária, mas o número salta para 88% para os ordenados desde 2000.
Padres sobrecarregados
Um sinal de alerta da pesquisa não tem nada a ver com as preferências ou crenças dos padres: eles se sentem sobrecarregados, especialmente os mais novos. Diante da frase “espera-se que eu faça muitas coisas que vão além do meu chamado como sacerdote”, 11% dos padres ordenados antes de 1980 concordaram, mas o número subiu para 45% entre os sacerdotes ordenados depois de 2000. Que coisas são essas, o relatório não diz – por exemplo, se são tarefas administrativas, organizacionais, financeiras etc. Por isso, só podemos especular. “Estão pedindo a esses homens [padres ordenados mais recentemente] coisas que não pediam às gerações anteriores de padres? Ou eles [os padres mais “novos”] não veem algumas tarefas como responsabilidades de um padre, enquanto as gerações anteriores as viam como parte de seu ministério?”, perguntam os autores do estudo. Seria possível imaginar que talvez uma proporção maior dos padres mais “antigos” já não estivesse a cargo de uma paróquia e pudesse se dedicar mais à oração e à celebração dos sacramentos, mas os autores também perguntaram aos padres quantas paróquias estavam sob sua responsabilidade, e não acharam correlação entre esse número e a afirmação sobre tarefas que vão além do ministério sacerdotal.
Também muito preocupante é a quantidade de padres “solitários”, de acordo com uma escala desenvolvida pela Universidade da Califórnia Los Angeles. Enquanto 27% dos padres ordenados antes de 1980 marcaram pontos suficientes no questionário para serem considerados “solitários”, o número subiu para 34% entre os ordenados nos anos 80 e 90, e chegou a 45% entre os sacerdotes ordenados depois de 2000. No começo de agosto, quando comentei o caso do suicídio de um padre italiano, lembrei que “nem sempre o padre tem uma rede de apoio, como família e amigos; se é transferido de paróquia (como virou costume em muitas dioceses), tem de construir laços do zero”. Pelo jeito, isso é algo que exigirá cada vez mais atenção das dioceses (e as nossas orações).
O surgimento de uma nova geração de padres mais teologicamente ortodoxos, que dão mais valor à devoção eucarística e a liturgias bem celebradas, sem perder de vista temas como a pobreza, é muito positivo
O futuro parece bom
Ainda que os números se refiram apenas aos Estados Unidos, é claro que eu vejo com muito bons olhos o surgimento de uma nova geração de padres mais teologicamente ortodoxos, que dão mais valor à devoção eucarística e a liturgias bem celebradas, sem perder de vista temas como a pobreza – que, repito, os conservadores deixaram que fossem sequestrados pela esquerda, mas que são essenciais para os católicos quando tratados da forma correta. É desse grupo que, espero eu, virão os futuros bispos, que por sua vez ajudarão a formar novos bons sacerdotes. Quem quer que tenha lido obras como o deprimente Adeus, homens de Deus (deprimente não porque o livro seja ruim, mas pela realidade que ele mostra) sabe do estrago feito pela ideologia ou, na “menos pior” das hipóteses, pela leniência em inúmeros seminários. É deles que sairá o futuro da Igreja, e precisamos seguir rezando para que Deus nos mande bons padres e bispos.
Maduro tentou capitalizar com canonizações, mas levou um puxão de orelha do Vaticano

No domingo, a Venezuela ganhou seus dois primeiros santos: José Gregorio Hernández e Maria del Monte Carmelo Rendiles Martínez, canonizados por Leão XIV na Praça de São Pedro. A ditadura de Nicolás Maduro vem tentando capitalizar em cima da cerimônia, organizando eventos de comemoração, mas nem o episcopado local nem o Vaticano engoliram essa. Os bispos venezuelanos sempre foram críticos à ditadura, mas andavam mais receosos depois da dura repressão contra quem não aceitou a farsa eleitoral de 2024 – o vencedor do pleito, Edmundo González, está exilado na Espanha. Dias antes da canonização, no entanto, os bispos publicaram uma carta pedindo a libertação de 800 presos políticos.
Na sexta-feira, um evento sobre as canonizações na Pontifícia Universidade Lateranense, com a participação de autoridades venezuelanas, foi manchado pela agressão a um jornalista bem diante de um figurão vaticano. O correspondente em Roma do ótimo site The Pillar, Edgar Beltrán, que é venezuelano, perguntou ao arcebispo Edgar Peña Parra, o sostituto (espécie de “número 2”) da Secretaria de Estado, sobre a politização das canonizações por parte do governo. Quando Peña Parra (que também é venezuelano) começou a responder, um brucutu que falava espanhol com sotaque venezuelano interpelou Beltrán, disse-lhe que ele não podia fazer perguntas sobre o governo, tomou o celular do jornalista, agarrou-o pela camisa e perguntou para quem ele trabalhava, tentando afastá-lo do arcebispo, que presenciava tudo perplexo. Um terceiro sujeito apareceu, pegou o brucutu e o afastou do repórter.
Ontem, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado (e, portanto, chefe de Peña Parra), celebrou missa na Basílica de São Pedro em ação de graças pelas canonizações. Parolin, que foi núncio na Venezuela entre 2009 e 2013, tendo presenciado a transformação do chavismo em ditadura, afirmou em sua homilia que os novos santos amaram a Deus com obras, e acrescentou: “só assim, querida Venezuela, você passará da morte à vida! Só assim, querida Venezuela, ‘sua luz brilhará nas trevas, sua escuridão se tornará meio-dia’, se ouvirá a palavra do Senhor que lhe chama a ‘abrir as prisões injustas, quebrar os grilhões, libertar os oprimidos, destruir todas as armadilhas”.
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E o cardeal continuou: “somente assim, querida Venezuela, você poderá responder à sua vocação de paz, se a construir sobre os fundamentos da justiça, da verdade, da liberdade e do amor, respeitando os direitos humanos, criando espaços de encontro e de convivência democrática, dando prioridade ao que une e não ao que divide, buscando os meios e as oportunidades para encontrar soluções comuns aos grandes problemas que a afetam, colocando o bem comum como objetivo de toda atividade pública”. Isso tudo na frente de vários chavistas da delegação oficial do governo, liderada por Cármen Melendez, prefeita de Caracas – que aparentemente mentiu sobre uma audiência concedida por Leão XIV na segunda-feira, já que o boletim oficial da Sala de Imprensa da Santa Sé não menciona nenhum encontro específico do papa com a delegação venezuelana, apenas com “peregrinos vindos para as canonizações de 19 de outubro”.
Papa Francisco criticou Maduro em várias ocasiões
Antes que algum leitor venha aqui fazer a caveira do papa Francisco, dizendo que ele foi complacente com o chavismo, recordo que o pontífice criticou Maduro em várias ocasiões, especialmente depois da fraude eleitoral de 2024. “Ditaduras não servem e acabam mal, mais cedo ou mais tarde”, afirmou ele em entrevista coletiva logo depois daquele pleito, e na véspera da nova “posse” do ditador, em janeiro deste ano, pediu respeito aos direitos humanos no país, inclusive o dos presos políticos.
O episódio que considero mais interessante, no entanto, ocorreu em 2019. Maduro já tinha vencido uma eleição fraudada em 2018, cujo resultado não havia sido reconhecido por boa parte das democracias ocidentais – foi naquela ocasião que Juan Guaidó se declarou presidente interino do país. O Vaticano já havia feito uma tentativa frustrada de mediação entre a ditadura e a oposição democrática em 2016, e Maduro pediu ao papa que repetisse a dose em 2019. O papa respondeu em uma carta endereçada ao “excelentísimo señor Nicolás Maduro Moros, Caracas”, omitindo o termo “presidente”, e afirmando que desta vez não colaboraria para um processo que o governo sabotaria, como fizera no passado. “O que foi acordado nas reuniões não foi seguido por ações concretas para implementar os acordos”, escreveu Francisco, que jamais deixou de apoiar a conferência episcopal venezuelana na sua oposição ao ditador.











