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Falta pouco para a canonização de Carlo Acutis e Pier Giorgio Frassati, marcada para 7 de setembro na Praça de São Pedro, no Vaticano. O mais famoso da dupla é Acutis, que morreu de leucemia em 2006, aos 15 anos (mas também vale muito a pena conhecer mais sobre Frassati). Curiosamente – ou, talvez, nem tanto –, tem havido uma campanha sutil contra a canonização, ou tentando de alguma forma manchar a memória do adolescente, e que une publicações seculares e teólogos “progressistas”.
Em março deste ano, a revista The Economist publicou uma enorme reportagem intitulada “The secret life of the first millenial saint”, que pode ser resumida na frase “nada em sua [de Carlo] escassa história de vida explica que esse adolescente comum esteja prestes a se tornar o primeiro grande santo do século 21”. O repórter até explica direitinho como funciona o processo de canonização, usa todos os termos técnicos corretamente, para depois mandar indiretas à “fábrica de santos” na qual João Paulo II (ele mesmo vítima de uma indireta do jornalista) teria transformado o Vaticano. O jornalista conseguiu até colocar uma parente de Frassati para dizer que “não há nada de interessante sobre ele [Acutis]”. Em resumo, aparentemente a canonização de Carlo Acutis seria mais uma questão de momentum, de hype, que de santidade propriamente dita.
Por quê? Porque, pelo que entendi da reportagem, que conversou com amigos e conhecidos de Carlo, ele não bate com um certo “ideal de santidade” que pode até ser aquele criado por uma mentalidade secular, mas não é o ideal da Igreja. Suponho que o jornalista estivesse esperando ouvir relatos sobre um adolescente que não tivesse outro assunto a não ser as coisas de Deus, que dedicasse as 24 horas do seu dia a isso, que só falasse de religião com os outros – enfim, um menino que transpirasse água benta. Mas, em vez disso, achou um rapaz que gostava de carros, que assistia aos Simpsons, que tinha outros interesses bastante normais para alguém da sua idade. A matéria deixa subentendido que essa faceta de Carlo Acutis não bate com as hagiografias que se escrevem sobre ele, mas minha impressão é a de que ela não bate com o que o jornalista esperaria encontrar de alguém que está sendo declarado santo pela Igreja. Aliás, chama a atenção o fato de a reportagem falar muito pouco sobre o que acabou sendo o momento mais “heroico” de Carlo: a doença e a forma como ele ofereceu seus sofrimentos a Deus.
“Virtude heroica não significa que o santo faz uma espécie de ‘ginástica’ de santidade, algo que as pessoas normais não conseguem fazer. Ao contrário, significa que na vida de um homem se revela a presença de Deus.”
Cardeal Joseph Ratzinger, em artigo de 2002 para o jornal L'Osservatore Romano.
Mas, então, o que diz a Igreja sobre a santidade? A esse propósito, recordo um belíssimo artigo que o então cardeal Joseph Ratzinger escreveu por ocasião da canonização de São Josemaría Escrivá, em outubro de 2002, e que saiu no L’Osservatore Romano. Nele, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé explicava que um santo não é uma espécie de “super-herói da fé”:
“Virtude heroica não significa que o santo faz uma espécie de ‘ginástica’ de santidade, algo que as pessoas normais não conseguem fazer. Ao contrário, significa que na vida de um homem se revela a presença de Deus, isto é, se revela o que o homem por si só e para si não podia fazer. Talvez se trate, no fundo, apenas de uma questão terminológica, porque o adjetivo ‘heroico’ foi mal interpretado. Virtude heroica propriamente não significa que alguém fez grandes coisas sozinho, mas que na sua vida aparecem realidades que ele não fez, porque foi transparente e disponível para a obra de Deus. Ou, por outras palavras, ser santo não é mais do que falar com Deus como um amigo fala com outro amigo. Eis a santidade.
Ser santo não significa ser superior aos outros; antes, o santo pode ser muito débil, pode ter cometido tantos erros na sua vida. A santidade é este contato profundo com Deus, fazer-se amigo de Deus: é deixar agir o Outro, o Único que realmente pode fazer com que o mundo seja bom e feliz. (...) todos somos capazes, todos somos chamados a abrir-nos a esta amizade com Deus, a não abandonar as mãos de Deus, a não deixar de voltar sempre de novo ao Senhor, falando com Ele como se fala com um amigo, sabendo bem que o Senhor realmente é o verdadeiro amigo de todos, mesmo de quantos não podem fazer grandes coisas sozinhos.”
Ataque de teólogo foi tão grosseiro que até sua universidade se distanciou dele
Assinei a Economist por algum tempo e, por mais que a revista defenda algumas plataformas de costumes contrárias ao ensinamento católico, eu não diria que a publicação como um todo é anticatólica; no máximo, creio que ela não compreende bem esse mundo. Mas essa desculpa não pode ser aplicada ao teólogo Andrea Grillo, que publicou mais de um artigo malhando Carlo Acutis em sites italianos na segunda quinzena de junho; os textos foram, depois, traduzidos e publicados em português pelo IHU Unisinos (quem mais?). Um deles começa com a pergunta: “Como é possível que um jovem beato possa comunicar uma teologia eucarística tão ultrapassada, tão pesada, obsessiva, tão concentrada no inessencial e tão pouco atenta, em vez disso, às coisas decisivas?” Em outro, Grillo chama de “opinião repreensível” o desejo de Carlo de oferecer os sofrimentos causados pela doença para que escape do Purgatório e vá direto ao Céu. Neste mesmo artigo, comentando a devoção eucarística de Carlo, Grillo comete essa barbaridade:
“É um ‘apóstolo da Eucaristia’ um garoto que imita os pastores de Fátima e coleciona imagens de todos os milagres eucarísticos? Em vez de educá-lo, preferiu-se deixá-lo seguir por sua conta? Ou trata-se de uma tentativa, através dele, de infantilizar toda a Igreja, propondo a todos como modelo um garoto que não foi guiado pela sabedoria que os adultos (leigos e clérigos) que o rodeavam deveriam ter tido com ele? Por meio de um garoto de 15 anos, que repete estereótipos oitocentistas, promove-se uma espiritualidade e uma Igreja, uma ideia de sacramento e de oração que está atrasada em 200 anos. Uma Igreja em saída, certamente, mas pela porta dos fundos, rumo ao saudosismo e à garantia das formas mais limitadas de devoção individualista e burguesa.”
O que deixa Grillo tão transtornado assim quando fala de Carlo Acutis? É que o jovem acreditava piamente na transubstanciação: que, na missa, o pão e o vinho de fato se transformam no Corpo e no Sangue de Cristo; Carlo catalogava e divulgava milagres eucarísticos justamente porque vivia essa convicção. Isso é aterrorizante para Grillo, que chega ao ponto de dizer que a reforma do Missal Romano, em 1969, teria mudado a doutrina católica sobre a Eucaristia, e lamenta que a “cultura dos milagres eucarísticos (...) esteja ligada a uma leitura minimalista, seca e ultrapassada tanto da consagração quanto da celebração eucarística”.
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É tudo tão, mas tão abjeto que o Pontifício Ateneu de Santo Anselmo (conhecido como “Anselmianum”), a universidade onde Grillo leciona, se viu na obrigação de publicar uma nota, dias depois de o teólogo ter cometido aquele par de artigos:
“O Pontifício Ateneu de Santo Anselmo se distancia resolutamente do que é manifestado individualmente por professores que, em caráter pessoal e assumindo responsabilidade completa, publicam suas teses, posições e opiniões pessoais em sites ou blogs. Elas não representam o que é ensinado nas várias faculdades de nosso Ateneu, que aceita e transmite na totalidade, em plena confiança e obediência na fé – na perspectiva de uma dialética saudável na qual se baseia a verdadeira pesquisa teológica – o ensinamento da Igreja e do Romano Pontífice.”
Meio covarde a nota, que nem sequer menciona Grillo pelo nome, embora todos soubessem a quem ela se referia. Mas, como já li por aí que até algum tempo atrás o teólogo mandava e desmandava na faculdade, já é um começo.
Uma coisa é criticar, por exemplo, a redução nos prazos para a canonização, ou alguns aspectos do processo como a eliminação do “promotor da fé” (popularmente conhecido como “advogado do diabo”), a figura responsável por argumentar, no Vaticano, contra a canonização de determinada pessoa. Ou, no caso específico de Acutis, pode-se criticar algumas formas como ele tem sido retratado na arte sacra, ou o tom meloso de certos relatos sobre sua vida. Até aí estamos em um debate válido. Mas desmerecer Carlo Acutis com base em visões distorcidas do que seja a santidade ou, pior ainda, criticá-lo por defender a doutrina tradicional sobre a Eucaristia, é de uma ignorância (ou, no caso de Grillo, de uma torpeza) sem tamanho.








