Opinião

Ali onde a Manoel Ribas faz a curva

02/09/2022 20:28
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Quando me perguntam onde moro, respondo com o nome do bairro: Cascatinha. Mas as pessoas sempre precisam de mais referências para se situar. Então falo em Santa Felicidade, bairro que está logo ali no fim da minha rua, naquele ponto em que a Manoel Ribas faz uma curva na rotatória e segue para o “centro” onde se anima com os restaurantes e o comércio. O trecho da avenida que vem do bairro e não faz a curva é a Via Vêneto, nome escolhido em uma consulta à população feita pela prefeitura em 1987. Eu estava começando a trabalhar como jornalista na época e escrevi uma reportagem para a Gazeta do Povo. Morava no Batel e trabalhava na Praça Carlos Gomes. Sobre Santa Felicidade, não sabia nada.
Vi um vídeo sobre aquele dia, 35 anos atrás. O cinegrafista se fixou nos moradores, muitos vestidos em trajes típicos ou levando carroças e cavalos, o que dá às imagens uma “antiguidade” muito maior do que a real: os bravos moradores de Santa Felicidade parecem ter acabado de descer do navio que os trouxe do Vêneto. As poucas imagens que mostram o bairro revelam uma comunidade com grandes espaços vazios. Este foi sempre o charme de Santa Felicidade: uma cidade do interior dentro da capital, com bosques, rios, igrejas construídas pelos pioneiros e tudo o mais que precisamos. Pensando bem, não tem nem livraria nem sebo.
Não sou de família do bairro nem tenho origem italiana. Gosto daqui por causa da natureza. Nem quando vivia no interior vi tantos animais silvestres como no Cascatinha e em Santa Felicidade: jacus, biguás, sabiás-laranjeira, gambás e saguis são comuns. Os serelepes já foram mais numerosos. Abelhas nativas rondam as flores rosas da minha sete-léguas. Um porquinho-da-índia do meu filho foi levado do quintal por um gavião-carijó. Já vi tucanos-de-bico-verde, jabuti, tatu e coruja. Temo que estejam todos condenados a desaparecer nos próximos anos com o avanço dos novos imóveis sobre as bordas dos matagais nativos, que vão sendo estrangulados.
Os vizinhos gostam de fazer o registro dos passos de seus antepassados pelas ruas do bairro. Um conta que tal casa foi construída por seu pai; outro diz que toda a quadra pertencia a sua família e era usada para plantar morangos. A escola onde estudaram meus filhos e boa parte dos moradores do bairro, a Angelo Trevisan, era o quintal desse povo que carrega sobrenome italiano: lá todos se conheciam. A escola original, de madeira (a Angelo Trevisan foi transferida para um prédio maior em outro bairro), é do tipo que se via nas zonas rurais Brasil afora, mas que hoje são raríssimas. Do outro lado da rua, a Capela de São Judas Tadeu é uma preciosidade feita com tábuas, cuidadosamente preservada por uma parte da comunidade. No dia em que fui conhecê-la, a missa foi celebrada por um padre haitiano que era adorado pelos paroquianos “italianos”. A paróquia sempre tem um sacerdote haitiano que trabalha na Pastoral do Migrante, junto à matriz, lá no centro de Santa.
Santa Felicidade tem seus loucos e esquisitos, como toda cidade que se preze. Um deles, um italiano que ajudava os motoristas a estacionar em troca de moedas, usava uma mistura de idiomas incompreensível e parecia sempre furioso. Diziam que perdera o juízo por uma desilusão amorosa. Morreu atropelado por um motorista que não o enxergou, pequenininho que era, gesticulando como louco e tentando fazer seu ofício de manobrista.
Sobre Santa Felicidade, o maior equívoco é que é um bairro gastronômico. É um exagero. Há restaurantes grandes e que sabem agradar o curitibano e os turistas com comida caseira preparada em proporções industriais. Um ou outro restaurante se diferencia, mas acredite, não há justificativa para usar o adjetivo gastronômico. Turístico, sim. Vejo muitos turistas em Santa Felicidade. Até uns 20 anos atrás, eles encontravam muito artesanato em vime produzido nas redondezas e vendido em pequenas lojas. Restou pouco. O centro comercial do bairro se modernizou, o que significa – em qualquer lugar do mundo – ficar parecido com todas as outras cidades.