Marleth Silva

Anotações do inverno de 2021

17/07/2021 10:03
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Todo mundo tem três vidas: a vida pública, a vida privada e a vida secreta. Na primeira, estão glórias e humilhações, sucessos e derrotas: tudo passageiro e ilusório. Na segunda, estão as alegrias cotidianas, como o contato com a família e com os amigos, e os aborrecimentos, geralmente nascidos da interação com a mesma família e com os mesmos amigos. Resta para a vida secreta os desejos, as experiências íntimas e os pensamentos que definem quem somos. A nossa alma está na vida secreta.
Não há ser humano que não tema ser repudiado e desprezado se seus segredos forem contemplados a luz do dia. Somos naturalmente catastróficos e egocêntricos quando avaliamos o risco implícito em revelar-se. Que ridículo eu sou! Que humilhação será se descobrirem que desejo coisas que nunca tive! Que pensamentos cruéis eu escondo!
É um baita exagero. A maioria de nós não pareceria detestável ou lamentável se nossa alma fosse tornada pública; talvez um pouco ridículos, um pouco tristes. Mas quem não é? Estou convencida de que quem é de fato detestável ou risível já revela esta natureza na vida pública e na vida privada. Nas demais pessoas, os segredos guardados na vida secreta são sobretudo mesquinharias, inveja ou desejo de vingança, tudo bem reprimido e escondido.
Quem disse que todo mundo tem três vidas foi Gabriel Garcia Márquez quando dava entrevista para um biógrafo. O biógrafo perguntou se Márquez lhe contaria sobre sua vida secreta e ele respondeu: Não, nunca.
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A menina descobre o mundo. Descobre por que é criança e cada dia é uma novidade. As palavras são novidade. As pessoas são novidade. Ela diz para a mãe:
“Eu gosto de flor cor-de-riso”.
E a mãe ri.
“É cor-de-rosa, neném! Não existe cor-de-riso.”
A menina fica confusa. Se não existe cor-de-riso, como é que a mãe riu tanto só de ouvir falar?
Os adultos se perguntam: “Como é possível esse menino ser tão criativo?”
O menino é criativo porque seu olhar é novo, sua audição é nova, até seu paladar é novo. Não existe tanto certo e errado para ele. Ele vê pela primeira vez, ouve pela primeira vez, sente pela primeira vez. Essa virgindade o torna original sem fazer nenhum esforço para sê-lo.
Pode ser que, mais tarde, ele chegue perto de reproduzir a experiência da infância. Mas será sempre uma vitória fugidia porque a mente treinada se sobrepõe e ocupa o interstício entre as camadas de conhecimento acumulado que, por segundos, se abre e ele tenta explorar.
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Com o avanço da vacinação por faixa etária, aumenta o número de amigos que recebem a primeira dose da vacina. É uma alegria ver as fotos que trocamos – adultos grisalhos e sorridentes exibindo imagens de si mesmo tomando uma injeção no braço. É uma situação tão nova que faltam palavras para contar sobre essa emoção que expressamos com pudor em respeito a tantos que estão de luto.
Quando entrei na sala de espera da unidade de saúde, tive vontade de gritar: alegria, alegria! Era uma manhã gelada e com uma neblina persistente. A unidade de saúde Pinheiros está próxima ao Rio Cascatinha, em uma rua apertada – as pessoas desciam com cuidado dos automóveis estacionados as margens do rio para não pisar em falso e cair lá embaixo. Imagine ir tomar vacina contra covid e acabar rolando para dentro do Cascatinha! Antes de ir embora, dei uma boa olhada no rio onde uma marreca nadava – ou caminhava – s sobre o leito quase seco. Quando eu voltar, em setembro, para a segunda dose, será primavera. Talvez seja a vez de meus filhos receberem a imunização. Aí a alegria será maior ainda.