Opinião

“Cadê você? Que nunca mais apareceu aqui”

24/11/2022 13:14
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Minha profissão me dá a oportunidade de ouvir relatos muito curiosos vindos de estranhos. Como o rapaz que, após uma entrevista, me contou uma história de amor e desamor na qual ele se viu envolvido por razões profissionais. Este rapaz, que chamarei de José, tem uma dessas profissões modernas com nome em inglês. Se bem entendi, é um especialista em analisar informações que estão circulando no mundo digital. Por exemplo: as empresas o contratam para interpretar a opinião dos consumidores sobre delas a partir do que circula nas mídias sociais. Tudo com base em estatísticas, logaritmos e contextualização (em que situação o nome da empresa apareceu). Ele evita análises subjetivas. Tudo tem que ser demonstrável em tabelas e gráficos.
No início deste ano, ao apresentar um trabalho para um cliente (empresa grande, estrangeira, sede em prédio poderoso de São Paulo), José foi abordado por um dos executivos. Sim, ele podia fazer um trabalho para um cliente particular, “pessoa física”, ainda que isso não fosse usual. Marcaram uma conversa fora dali.
José me disse que aceitou o trabalho porque ficou curioso. O cliente era um homem de cerca de 70 anos, inteligente, educado, simpático. Casado, filhos. E tinha uma ex-mulher. A ex tinha sido um grande amor, mas o relacionamento acabou de forma amarga e os dois nunca mais se viram. Não tinham amigos em comum nem contato com familiares. Sendo assim, ele nunca tinha notícias dela e nem ela, dele. Uma ou duas vezes, ao longo de uns 20 anos, chegou a ver o nome da ex mencionado em reportagem de jornal por causa de trabalhos em que estava envolvida. Agora ele quer saber se ela está viva. Se souber algo mais, ótimo. Mas o principal é saber se está viva. O que o atormentava é ter se dado conta de que a mulher que um dia amou podia ter morrido sem que ele soubesse. A pandemia o fez pensar nisso. “Ela é diabética, sabe?” E se ela for uma das 700 mil vítimas brasileiras? Como ele pode descobrir? Existe uma lista das vítimas em algum lugar?
A demanda era simples. Aquele homem provavelmente teria outras formas mais baratas de descobrir se a ex-companheira estava viva. Mas ele não queria fazer a busca e não queria envolver pessoas próximas. José me disse que ficou impressionado com a situação. Olhou a “pessoa física” na sua frente em busca de sinais de maldade ou loucura. Seu medo era o de ser usado para algum tipo de vingança tardia. Mas não encontrou estes sinais. Encontrou desalento e afeto nos olhos do homem. Ele ainda se importava com a ex-esposa e parecia realmente apavorado com a possibilidade de que ela não existisse mais. Algum vínculo ainda o ligava àquela mulher, um vínculo que era como um fio transparente e muito fino, como uma teia de aranha: minúsculo e incrivelmente forte.
José topou fazer o serviço, que não exigiu esforço. Em poucas horas já podia dizer que a ex-companheira de seu cliente seguia trabalhando, mantinha nas mídias sociais contas que não utiliza, não tinha problemas com a Justiça e – será que ele contou isso ao cliente? – usava o Tinder.
O cliente ficou satisfeito com o resultado do trabalho do José. Não pediu detalhes. Pareceu aliviado em saber que a ex estava viva.
Tudo está bem quando acaba bem? Ao se despedir, o homem disse a José: “Que triste eu ter que contratar você para saber dela, não é?” O que José respondeu? Nada. Por delicadeza, julgou melhor não dizer que concordava. Para mim, ele disse com seu jeito impassível de estatístico: “É triste, sim, mas acontece.”