Marleth Silva

A cidade nos aguarda lá fora

12/04/2021 14:29
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O que seria do cronista sem as ruas? Sem a cidade, a vizinhança, do que falaria? Neste momento em que escrevo, estamos em lockdown em Curitiba. Lá fora, a insegurança. Passeio? Só as quadras que percorro com o cachorro. As conversas com moradores do bairro, que sempre me divertiram, agora evito. A maioria, negacionista, seja por motivação política, desinformação ou por sofrer com as perdas econômicas.
Por falar em desinformação, o porteiro acaba de me contar: leu em um grupo de WhatsApp que foi descoberto um medicamento que cura Covid-19. Ele me contou sorrindo. Sei. Quem inventa uma notícia dessas deveria ser identificado e preso.
Domingo, circulo de carro por alguns bairros: Cascatinha, Santa Felicidade, Bigorrilho, Mercês, São Francisco, Centro Cívico, Alto da XV. No caminho, o Passeio Público, às moscas. Quero ver Curitiba sob lockdown. Nas ruas, algumas pessoas jovens, vestidas com roupas esportivas, caminham ou correm. Outros tantos passeiam com cachorros. Aqueles que vivem na rua, na rua continuam. Para onde quer que olhe, vejo os entregadores. De moto e bicicleta, homens e mulheres.
Ninguém mais.
Curitiba, com ruas varridas e vazias. Me faz lembrar de quando a mãe limpava bem a casa antes de viajarmos. A casa também ficava limpa e vazia, como as ruas nestes dias.
Quinta-feira, volto para o carro. Agora quero ver o Centro. É dia de semana, tem mais gente nas calçadas. Parecem trabalhadores. Carregam sacolinhas plásticas. Uma ou outra loja que não deveria estar aberta se arrisca. No mais, portas abaixadas.
Alguns transeuntes chamam a minha atenção:
As mulheres orientais (chinesas?) continuam puxando seus carrinhos de compra pelas calçadas tortas do centro. Agora cobrem os sorrisos tímidos com máscaras.
Muitas lojas fecharam, mas há também novas portas abertas.
Cafés, pequenos e modernos, proliferam pelo Centro como cogumelos depois da chuva. Quando a normalidade voltar, alguém que caminhe do Batel até o Centro poderá tomar uns dez cafés diferentes no trajeto, todos de grãos selecionados e preparados por baristas (será que sairemos de casa a toda hora, ansiosos para compensar o tempo perdido?)
Da Marechal, observo um canto do velho prédio dos Correios, na XV, onde grandes letras em alto relevo anunciam um serviço que não existe mais: “Telégrafo”.
Na Riachuelo, o brechó mudou de endereço e deixou um cartaz caprichado avisando à clientela: “Meus queridos, estamos no número...”
No outro lado da rua, a moça carrega várias sacolas de compras em cada mão. Caminha devagar e as sacolinhas plásticas batem nas pernas expostas pelo shortinho. Na esquina, a amiga aparece e se oferece para carregar metade dos pacotes. Se aproxima perguntando: “Cadê o marido?” As duas são observadas pela prostituta loira e alta que come uma marmita pequena demais para aquele corpanzil. Come ali mesmo, na esquina.
Curitiba, a cidade, segue intacta e nos aguarda, com dor e esperança no coração.