Coluna

A música da nossa vida

18/06/2021 19:15
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É um daqueles fatos da vida: cada geração tem seu gosto musical, que depois de formado pouco muda ao longo dos anos. Esse fenômeno foi testado em pesquisas de todos os tipos, das acadêmicas àquelas feitas por jornalistas curiosos utilizando as bases de dados dos serviços de streaming. Chegou-se à conclusão de que, para os homens, o período mais importante para a formação do gosto musical vai dos 13 aos 16 anos. Para as mulheres, entre 11 e 14 anos. Quatorze anos é uma espécie de idade mágica para o desenvolvimento do gosto musical.
Entramos na idade adulta e continuamos permeáveis as influências dos meios por onde circulamos, sensíveis às novidades musicais. Nos encantamos com os novos compositores e intérpretes que descobrimos e, através deles, nos aproximamos de suas influências, que podem ser músicos de gerações anteriores. Vamos formando uma coerente teia de sensibilidade musical. Seguimos assim até por volta dos 24 anos, quando o gosto musical está formado e passamos a ser mais distraídos, menos receptivos ao que ainda não conhecemos. Os motivos citados para isso nas reportagens que li vão dos hormônios do crescimento à mudança na audição, passando pela formação da personalidade.
Outro fato da vida: chega um dia em que quase todos nós começamos a falar mal das canções lançadas agora, que parecem tão sem graça aos nossos ouvidos. Se levamos em conta o que registrei no parágrafo acima, entendemos que é tolice julgar a qualidade do gosto musical de cada geração. Ainda que existam de fato períodos mais ricos (no caso da MPB, 1973, por exemplo, foi um ano excepcional) e outros muito pobres, cada pessoa será influenciada em alguma medida pelo ambiente e pelo tempo em que está crescendo independente das tolices que estiverem fazendo sucesso.
Dias atrás me espantei ao notar que ignoro quase tudo que está sendo ouvido pela geração dos meus filhos, que estão na faixa dos 20 anos. Creio que com a diminuição da influência do rádio e da tevê e o avanço da experiência individualizada de ouvir música no streaming e usando fone de ouvido, não somos tão expostos as “paradas de sucesso” (expressão bem anos 70, eu sei). Lá fora, ouve-se Barões da Pisadinha, Gloria Groove, Ludmilla e eu aqui continuo cantarolando Cássia Eller e Cazuza.
Nos últimos dias, tenho ouvido o que é novo quando ele chega até mim, em um esforço para não me desligar tanto assim do mundo lá fora. Continuo não gostando das letras de autoexaltação que aparecem em todos os ritmos e que falam de pessoas que se consideram fantásticas e que não precisam de ninguém. Goste eu ou não dessas canções, continuarão aí, refletindo o espírito dos tempos atuais em que o indivíduo é conclamado a “se amar” acima de tudo. Quem acredita nessas letras vai aprender uma ou duas coisas com as lambadas que a vida dá, do mesmo jeito que aprendemos nós, os cinquentões, que acreditávamos na poesia trágica de Gonzaguinha e Maria Bethânia.
Aliás, veja só: Gonzaguinha lançou um LP em 1980, quando eu tinha 14 anos – lembra da idade mágica para a formação do gosto musical? – que foi um grande sucesso e do qual ainda posso cantar de memórias várias faixas (“Quando eu soltar a minha voz / por favor me entenda...”). Também andávamos ouvindo o LP Mel, que Maria Bethânia tinha lançado no fim de 1979 (“Ó abelha rainha / faz de mim / um instrumento de teu prazer, sim / e de tua glória...”). Tudo muito denso, sensual e trágico, como convinha naqueles anos. Nos anos seguintes, minha geração ganhou voz e leveza com o avanço do rock nacional. Mas a nossa relação com os intérpretes dramáticos persistia, daí a entrada em cena de Cássia Eller, Cazuza e Renato Russo. Muitos anos mais tarde, descobri Leonard Cohen e Marianne Faithfull e vejo agora que eles não destoam dos brasileiros que formaram meu gosto musical. Enquanto isso, em outra vertente, o samba entrava na minha vida.
Fui citando aqui alguns nomes conforme eles me vinham à memória. Outra pessoa da minha geração citaria outros, já que cada um segue uma trajetória própria. O mesmo exercício feito por alguém de 40 anos resultaria em outra narrativa, que seria imediatamente compreendida por aqueles que compartilham a mesma idade. É a graça da vida: estamos todos no mesmo barco, mas ouvimos o barulhinho eterno da maré como se fosse um som totalmente novo, composto só para nós e nossa turma. Por isso é que amamos tanto a música.