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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Passei minha infância em cidades do interior do Paraná onde não eram publicados jornais e os de fora pouco circulavam. Mesmo assim, meu pai trazia para casa os diários de Curitiba e às vezes até O Estado de S.Paulo. Não sei como fazia isso. Talvez tivesse uma assinatura. Lembro-me de ver em casa exemplares d’O Estado do Paraná, que era forte no interior do estado.

Foi nele – que os jornalistas gostavam de chamar de Estadinho – que vi, no dia 18 de julho de 1975, as fotos da neve que havia caído em Curitiba no dia anterior. Eu era uma menininha no início da vida escolar, mas morando em cidade pequena podia ir sozinha ao dentista. Na sala de espera, peguei o Estadinho repleto de fotos da neve que não se repetiria mais. Estranho eu lembrar disso. De uma infância guarda-se quantas imagens na memória? Vinte? Trinta? Por que me lembro de estar na sala de espera do dentista com um jornal? Provavelmente pela excepcionalidade da neve no Brasil.

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Em Curitiba, meu pai passaria a comprar a Gazeta do Povo. Descobri, então, Carlos Drummond de Andrade. As crônicas eram longas e, se bem me lembro, sem ilustrações. Provavelmente eu passava os olhos pelo jornal todo. Caso contrário, como teria descoberto o autor que me encantou? Passei a recortar as crônicas para relê-las mais tarde. Às vezes também recortava tirinhas, frases soltas…

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Recortar jornais foi um vício de muitos leitores que conheci mais tarde, quando passei a trabalhar em redações.

Quantos recortes desta centenária Gazeta do Povo foram organizados em pastas, dobrados em gavetas e compartilhados – “você tem que ler isso!” – por paranaenses?

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Acostumados com a gigantesca oferta de informação que temos hoje, tendemos a pensar que antes da internet vivia-se na mais completa indigência informativa. Bobagem. O ritmo era mais lento, mas quem queria se informar encontrava os meios. Meu pai, na sua condição de bancário do Bamerindus que peregrinava de agência em agência, sempre em cidades pequenas, nunca abriu mão de ler jornal.

Difícil era conseguir livros. Livraria não havia em nenhuma das três cidades pequenas onde morei. Na última delas, Imbituva, a biblioteca pública foi danificada por um incêndio quando eu estava na idade de começar a frequentá-la. Foi reaberta em caráter precário e minha irmã, um dia, apareceu em casa com um exemplar emprestado que tinha a capa chamuscada.

Ou será que essa é uma imagem criada pela minha imaginação?

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Comentando a colaboração de Machado de Assis com os jornais de sua época, Lucia Granja escreveu que “um escritor monstruoso como ele não poderia deixar de aproveitar em sua própria composição os movimentos desarmônicos da modernidade”. Onde Machado encontrava esses “movimentos desarmônicos da modernidade”? Nas páginas dos jornais.

Continua sendo assim. O jornalismo é por excelência a testemunha desses movimentos que nos parecem desarmônicos e que a história, na sequência, irá filtrar, ordenar e explicar. Eles se apresentarão, então, mais coerentes, interligados e, portanto, harmônicos. Mas, no “aqui e agora” em que se faz e se consome o jornalismo, autor e leitor estão dentro do movimento. Por isso as lacunas em alguns relatos, a paixão que turva os olhos, o óbvio que escapa a todos e depois se revela descaradamente.

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Os jornais em papel vão se dissolvendo, artefatos exóticos para as gerações que cresceram olhando para uma tela. O jornalismo, sempre no olho do furacão e sujeito às críticas, não perde relevância. Ao contrário. A modernidade, seja ela a nossa ou a de Machado de Assis, avança levada pelos tais movimentos desarmônicos. O jornalismo tem sido a nossa ligação com ela, uma ligação que permite que naveguemos nossos dias sem sermos levados à deriva.

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