Opinião

Tiau, Maninha

13/10/2022 19:34
Thumbnail
Anos atrás, lendo alguns contos de Dalton Trevisan, tive a rara experiência de me emocionar com os textos a ponto de não conter as lagrimas. Estou sempre com um livro na mão, mas chorar com literatura... Isso não é comum.
Eu não sabia que naquele dia a leitura estava me antecipando o que seria, anos depois, a ausência de Maninha.
Eram três contos. No primeiro, “Firififi”, é registrada a chegada de uma cachorrinha à casa da família e a relação afetuosa e brincalhona que se desenvolve entre ela e a menina. A descrição de Fifi serviria perfeitamente para a Maninha, a dachshund – ou “salsichinha” – que eu trouxe para casa na esperança de que fizesse bem ao meu filho, que sofria com problemas de ansiedade. O filho não se conectou ao animal o suficiente para se tornarem companheiros e ela percebeu que era comigo que podia contar. Maninha se empenhou para mostrar reciprocidade. Tornou-se minha sombra, sempre buscando estar no mesmo cômodo que eu, puxando a caminha para ficar mais perto de mim enquanto trabalhava. Como a Fifi do conto, ela tinha habilidade para pegar a bolinha que lançávamos e trazia de volta com uma pressa louca para uma segunda rodada. Como a Fifi, ela se intimidava quando eu a olhava nos olhos, grandes olhos redondos e castanhos. Como a Fifi, identificava os barulhos do mundo lá fora e se agitava. Não havia melhor aviso de que alguma correspondência esperava atrás da porta do que o latido contínuo da Maninha após notar – e só ela notava – que o porteiro tinha passado por ali.
No segundo conto, o título antecipa “O fim da Fifi”. A cachorrinha está com 11 anos e seu comportamento mudou, mas não sua dedicação à dona, agora uma jovem universitária sem tempo para brincar.
Então veio o terceiro conto, que disparou o gatilho dentro de mim: “Tiau, Topinho”. Nele, o contista avisa logo nas primeiras linhas que vai nos dizer como o “o velho Topi se finou dormindo”. Mas a razão de ser do conto é o relato de como foi viver os dias seguintes à morte do cachorro, aguardando que pegasse a casquinha do pão caída no chão ou que surgisse em disparada ao som da porta que se abre. Nada disso aconteceu porque Topinho não estava mais lá. Só o hábito e o amor que uniam homem e cão geravam a ilusão de sua presença.
Agora que Maninha morreu, aos 12 anos, eu passo pela mesma experiência. Sem ela na casa, descubro que minha amiguinha equivalia a um bando de alegres crianças fazendo barulho e ocupando todos os espaços. Todas desapareceram de uma vez e a casa ficou silenciosa demais. Quando estou começando a me acostumar com sua ausência, meu filho, que andava fora, volta. É a vez de ele passar pela síndrome de abstinência. A cada passo, me diz: não tem a impressão de que ela vai entrar correndo? É como se houvesse um fantasma na casa, porém o que existe de fato é o hábito de 12 anos que engana nossos cérebros. Doze anos com uma presença alegre e sempre interessada em nós – como não ser grata por aquela vida que era puro amor?
No conto de Trevisan, o cobertorzinho cinza de Topinho esquecido no varal é o último resquício de sua presença na casa. Aqui, Maninha deixou cobertorzinhos imaginários em frente aos nossos olhos. Temos prazer em lembrar e falar dela, ainda que seja triste. Não por sentimentalismo e sim por gratidão. É uma benção conviver com animais de outras espécies e descobrir que a interação com eles é profunda e nos mergulha no amor descomplicado de Maninhas, Fifis e Tópinhos.