Opinião

Um Natal nos anos 1970

22/12/2022 14:58
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Criança, nos anos 1970, eu morava em uma cidade pequena, com minha grande família. Seis filhos e um orçamento familiar modesto não permitiam que meus pais capricharem nos presentes de Natal. Creio que minha mãe detestava a tarefa de fazer compras. Ela sempre foi melhor reaproveitando o que tínhamos em casa (fazia milagres!) do que saindo para as lojas. Minha mãe não era de dizer o que pensava ou sentia, então posso apenas fazer deduções a partir de seu comportamento.
Eu era muito criança quando paramos de ganhar presentes de Natal. Já a ceia era sagrada. Neste aspecto, minha mãe e meu pai eram “antenados”, talvez até um pouco à frente dos hábitos do lugar onde morávamos. Isso tinha a ver, pelo menos em parte, com o fato de que meu pai era um grande leitor de jornais, o que acabava influenciando também minha mãe. Ela encontrou em um jornal a receita de panetone, guardou a página (por décadas!) e incluiu o pão doce nos nossos natais. Creio que o jornal era O Estado de São Paulo. Ninguém mais na família ou na vizinhança conhecia panetone. Nem lia O Estado de São Paulo, um hábito do meu pai que, dadas as circunstâncias, classifico como raro.
A lista de ingredientes a serem comprados era por si só uma coletânea de delícias: frutas cristalizadas, passas, laranja, nóz-moscada, baunilha, manteiga. Comprar os ingredientes era o início da festa.
Foi preciso improvisar as forma, latas pequenas que serviam para enfornar o panetone. Dava um trabalho danado preparar a massa em grande quantidade, sová-la, deixá-la crescer em um local apropriado (o perfume da noz-moscada e das raspas de casca de laranja se espalhando pelo ambiente). Nós, as crianças, como abelhas voando em volta da mãe e de sua massa mágica.
Uma toalha de mesa cobria o preparado que crescia em uma bacia. Então, vinha a hora de acrescentar as frutas picadas, sempre generosamente – ainda hoje, sempre questionamos a quantidade de frutas colocadas nos panetones que compramos, que parece miserável em comparação ao que se via nos coloridos panetones da mãe.
No forno, eles liberavam um perfume delicioso. Para nós, era como o sino da igreja chamando para a missa do Galo ou um Papai Noel no shopping center para as crianças de hoje. Aquele perfume nos dizia que o Natal estava chegando.
Uma vez, o panetone embatumou. Minha mãe deve ter ficado muito decepcionada. Mas comemos tudo, do mesmo jeito. Só muitos anos mais tarde, quando ela já estava idosa, passamos a comprar panetone industrializado. O da Bauducco, pioneiro no país, começou a ser comercializado em supermercados de todo o Brasil na segunda metade dos anos 1970, época em que minha mãe já estava nos presenteando com suas delícias caseiras.
Com o peru aconteceu algo parecido. O peru começou a aparecer nas mesas de Natal na mesma época do panetone, nos anos 1970. A minha lembrança de infância é corroborada por informações publicadas no site da BRF, dona da marca Sadia. Segundo a empresa, o primeiro peru colocado nos mercados na época de Natal foi da Sadia, em 1973. Em 1974, ele surgiu já temperado. Em 1975, apareceu o termômetro de cozimento. Deve ter sido nesse ano que meu pai chegou em casa com a ave gigante que tinha um termômetro enfiado no peito. Lá em casa, alguém disse que aquilo era um apito que soaria quando a carne estivesse assada. Claro que não apitou. O termômetro tem uma pecinha que emerge quando a temperatura chega a 81° C, indicando que a carne está assada. Naquele Natal da minha infância, quase comemos peru tostado por aguardamos o apito. Mas devia estar gostoso porque nunca mais passamos sem o peru temperado.
Como eu disse, morávamos em uma cidade pequena, Imbituva, que tinha na época cerca de 20 mil habitantes (antes de consultar o site do IBGE, eu supunha que era menos porque parecia que conhecíamos a cidade inteira). Os ingredientes do panetone, os primeiros perus e as castanhas para a farofa eram comprados em Ponta Grossa, para onde meu pai rumava quando precisava de algo diferente do usual.
Revendo aqueles Natais, vejo que minha geração foi testemunha do surgimento de algumas das tradições gastronômicas que ainda resistem nesta época do ano.
Tudo isso parece ter acontecido em outro mundo, eu sei. Mas foi apenas ontem.