No planeta das cidades

Padecendo no Paraíso: foi um tsunami que passou na minha vida

13/10/2023 12:48
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O tsunami mais mortal da história aconteceu em 2004. Foi provocado por um fortíssimo terremoto submarino que gerou ondas volumosas, causando a morte de cerca de 230.000 pessoas e prejuízos de 13 bilhões de dólares.
O país mais afetado foi a Indonésia, mas proporcionalmente a maior perda habitacional foi nas Ilhas Maldivas, no meio do Oceano Índico.
Coincidentemente, eu estava nas Ilhas Maurício representando a ONU na Conferência para Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Países Ilhas. Há 58 ilhas consideradas estados insulares em desenvolvimento, como Bahamas, Fiji, Haiti, Jamaica etc. São países com base econômica pouco diversificada, dependentes de turismo e com sérios desafios ambientais, incluindo tornados e tsunamis.
Um telefonema de Nova York me instruiu a viajar imediatamente das Ilhas Maurício para as Maldivas com o objetivo de formular um projeto. Explico: um desastre histórico como aquele tsunami gerou grande comoção internacional. O escritório da ONU nas Maldivas precisava de projetos urgentes para acessar fundos internacionais e iniciar imediatamente a reconstrução. A ONU não pode acessar fundos sem um bom projeto apoiado pelos países contribuintes.
O primeiro passo é entender a demanda a partir de conversas com governo e comunidades. A partir daí, o projeto precisa definir o que deve ser feito prioritariamente, por quem, como e quando. Há a definição de uma tabela de atividades ligada a um cronograma, como em qualquer obra.
Os tijolos são a “poupança” de Ahmed para reconstrução de sua casa.
Os tijolos são a “poupança” de Ahmed para reconstrução de sua casa.
O Presidente da Comissão de Reconstrução representava a cooperação holandesa, o maior doador. Fiz um cálculo rápido no verso de um envelope e mostrei a ele que, segundo o governo, 50% das casas nas Maldivas haviam sido afetadas. Isso equivaleria à destruição total ou parcial de todo o estoque habitacional de Rotterdam, Haia, e metade de Amsterdam. Ele entendeu.
Antes de pegar o primeiro avião de Maurício para Male, nas Maldivas – uma viagem de 15 horas via Dubai – solicitei uma reunião com a Diretora Executiva do HABITAT, agência para cidades e habitação da ONU. Quando cheguei, já havia dois consultores me aguardando.
Na mesma noite, tivemos uma reunião às 2h da manhã com o Ministro de Planejamento no centro de emergência improvisado que funcionava em uma quadra de basquete. Apesar da hora, a atividade era febril: equipes chegando e saindo, telefones tocando, dezenas de mapas nas paredes.
As Ilhas Maldivas são um país especial, formado por recifes de coral. O centro da cidade, o aeroporto, a universidade, o presídio e as províncias ficam em ilhas separadas, às vezes a centenas de quilômetros umas das outras.
O projeto foi aprovado depois de muitas visitas, entrevistas e até uma pequena aventura: esqueceram de abastecer nosso barco com combustível suficiente. Ficamos algumas horas em alto mar e fomos finalmente rebocados para a ilha mais próxima enquanto um barco de emergência trazia mais combustível.
Tive que rejeitar algumas ideias infelizes, como o uso de coral como material para autoconstrução ou a compra de “casas mediterrâneas” feitas com material reciclável, mas caríssimas e incoerentes com aquela realidade. Em geral, a solução para um problema habitacional nunca é a construção da casa em si. O acesso a um terreno e a infraestrutura acabam sendo muito mais importantes.
Eu disse que um dia voltaria às Maldivas de férias. Foi uma das poucas promessas que ainda não cumpri na vida.